sexta-feira, 23 de março de 2012

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SCARRED - Milena Martins

Cortei o pulso pra tentar não me matar. Mas deu errado.

Eu queria não ter querido o que aconteceu. Eu gostaria de não estar gostando de ter acontecido. Nenhuma emoção forte está em mim agora além de uma grande felicidade. E por isso estou triste. Não sinto nenhuma dor. E isso dói.

Camila, Camila, Camila, Camila, Camila. Não adianta, não adianta, não adianta.

Você tinha uma pele muito branca, como a minha. E não tinha nenhuma marca. Eu também não. Eu nunca te deixei cair, eu te protegi das cicatrizes. E um dia eu falhei.

Ontem o Mário chegou. Tocou três longas vezes a campainha. Ele sempre toca assim. Com quinze anos eu gostava de ouvir a campainha. Eu sabia que era ele quem tinha chegado. Com quinze anos eu gostava dele. Ontem não fui atender.

Chove, chove, chove, chove tanto, chove muito, chove demais. Deve ser a tempestade mais longa da minha vida. E a noite mais longa também. Se você estivesse aqui, mas não está, eu te colocaria pra dormir, mas não colocarei.

Camila, Camila, Camila, eu quero tanto, eu quero tanto repetir seu nome e querer chorar.

A campainha toca longamente. A campainha toca longamente. A campainha toca longamente. É o Mário. Não quero vê-lo.

Muita gente tem vindo me consolar. Não sabem que eu não preciso. Que agora eu estou livre de novo. Que eu esperei cinco anos pra ter de volta a minha liberdade.

Sonhei que eu te penteava, te penteava, te penteava, e que eu gostava, e que eu sorria, e que você gostava e sorria pra mim. E o seu cabelo nunca acabava, me sufocava, me sufocava. Você sorria. E se vingava.

Camila, Camila, Camila. Não adianta repetir seu nome. Eu nunca vou saber te amar.

Adriana me chamou pra sair hoje à noite. Talvez eu vá. Ela acha que eu estou morrendo. Mas quem morreu não fui eu.

Olho pela janela. Ainda chove. As ruas estão molhadas, o céu está cinza. Esse inverno está mais quente que o normal. A chuva cai como no verão. Mário está sentado no banco do jardim. Daqui não consigo ver o rosto dele. Mas sei que ele não para de chorar.

Camila, Camila, Camila, Camila. Camila, eu não soube te amar.

Adriana é uma coitada. Precisa fazer todo mundo acreditar que ela tem tudo e é muito feliz. Tadinha. Ela precisa tanto diminuir a todos pra se mostrar superior que nem percebe o quanto é pequena. Comigo ela não se cria. Nunca me enganou. Deve ser por isso que me odeia. Acho que ela me odeia.

Ela fica feliz achando que eu estou morrendo. Coitada. Mal sabe que ela não me atinge. Eu estou muito feliz longe de você.

Camila, eu quero te querer de volta, Camila, pra eu te amar como devia ser, como devia ter sido, Camila. Como eu nunca soube.

Cortei o dedo enquanto fatiava o pão pra rabanada de Natal que você não vai comer.

O Mário voltou hoje. Tocou duas breves vezes a campainha. Não achei que fosse ele. Fui atender. Ele está diferente. Eu gostei disso. Ele chorou. Tive inveja disso.

Sonhei com uma sala imensa. Milhares de pessoas estavam sentadas em milhares de cadeiras e assistiam a um espetáculo. Mas não ouviam as vozes que vinham do palco. Porque todos os telefones começaram a tocar.

Adriana tem marido, filho, casa própria, carro do ano, diploma, pós-graduação, emprego bom e dinheiro. Eu não tenho nada disso. Mas não choro no banheiro.

Vomitei cinco vezes em duas horas. Foi assim antes de você nascer. Mas agora acho que é nojo.

Camila, Camila, Camila. Um nome só vale enquanto não tem cicatriz.

Minha mãe me ligou às três da manhã. Não conseguia dormir. Disse que queria morrer, que queria morrer, que precisava muito morrer. Chorou duas horas no telefone. Depois desligou. Retornei a ligação hoje à tarde. Ela ainda está viva.

Fiz dois cortes nas pernas. Um em cada perna. Eles estão sangrando um pouco, mas não sinto dor. Eu tenho sangrado um pouco desde que te perdi. Mas não sinto dor.

Camila, Camila, eu matei muita gente, eu matei muita gente, muita gente. E mesmo assim ainda tenho vontade de viver.

Hoje está sendo um dia de merda. Desmaiei no trabalho. Vim parar no hospital. Meu pai veio tomar conta de mim e agora dorme na cadeira ao lado da cama. Talvez eu esteja morrendo. Talvez seja culpa por não sentir nenhuma culpa. A doença é o exagero da dor pela obrigação de viver.

Eles acham que eu estou assim porque te perdi. Eu estou assim porque quis te perder. Eles são muito cegos.

A vida passa, a vida passa, a vida passa, a vida continua passando. Só vai acabar quando eu não quiser.

Adriana agora só sai pro trabalho de casaco e calça jeans. Mas de mim ela não se esconde.

Estão todos mortos à minha volta. Minha mãe, meu pai, Mário, você. Só eu resisti. E ainda tenho esperança. Mas toda noite eu sonho.

Te vejo de novo, Camila, correndo alegre no barco, abrindo os braços pra mim e me pedindo colo. Eu não te dei.

Adriana está com um olho roxo. Cortou a franja. Mas de mim ela não se esconde.

A minha pele tão branca não tinha mancha nenhuma. Só veias verdes correndo sem ter nascente nem foz.

Eu tinha que trabalhar, eu tinha que te criar, eu tinha que te sustentar. Eu sofria tanto, eu chorava tanto, eu estava tão sozinha. O Mário não estava comigo, eu não tinha ninguém comigo. Eu só tinha você comigo e você dependia de mim. Eu só queira poder ir ao cinema de novo, tomar um porre de novo, dar uma festa de novo, dar pra alguém de novo, não ter que dar satisfações de novo. Agora eu estou livre de novo. E já não quero nada.

Eu matei Adriana quando o Mário me quis. Eu matei Adriana quando você nasceu. Ela não ressuscitou depois do que aconteceu.

Um sangue só vale se for derramado.

Camila, Camila, Camila, eu nunca soube ser mãe.

Na praia, acendo um cigarro, fico olhando a fumaça se desintegrando no ar. Tento ouvir sua voz reverberando com as ondas. Mas só escuto o mar. Eu podia ter te dado a mão. Ele te engoliu devagar. E depois não te devolveu nem mesmo pra eu te enterrar.

Mário jantou aqui em casa hoje. Entrou no seu quanto, chorou nas suas roupas, tentou sentir o seu cheiro, que com o tempo sumiu. Mário ficou muito bêbado e chorou muito, chorou muito, chorou muito. Ele se afogou contigo. Eu neguei a minha mão aos dois. Agora ele dorme na minha cama. Amanhã não vai lembrar que me pediu pra dar a ele outra Camila. E que eu aceitei.

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