quinta-feira, 26 de abril de 2012

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CONTAÇÃO: "O homem que deu à luz uma menina - Parte 1" - por M.Mei




O HOMEM QUE DEU À LUZ UMA MENINA

- Parte 1 -



Eu não acreditaria se o sitiante não o tivesse afirmado com tamanha convicção. Deduziria o desespero de uma mãe miserável, ou talvez um cruel sequestro frustrado. Certamente toda a história seria compreendida com naturalidade, fosse eu uma mulher. O fato é que a mim, homem que sou, mesmo o choro rachado tendo mexido profundamente como se brotasse do meu próprio peito, mesmo esse choro não fora suficiente para que eu percebesse tamanha absurdeza.
A cena toda se desenhava como uma infeliz ocasião em que um homem igualmente infeliz se refaz de um desmaio – possivelmente ocasionado pelo calor intenso daquele cerrado mato-grossense –, ao mesmo tempo em que o destino lhe entope os olhos com a imagem de uma criança desamparada. Acontece que aquela criança, aquela menina recém-parida e ainda de peles amarrotadas, não havia sido abandonada. Aquele bebê de choro magro tinha era pulado, para o mundo, de dentro de mim.
E o sitiante fitava-me como se eu fosse de outro planeta, e escorregava os olhos esbugalhados para o rasgo sujo em minha barriga e depois para a criaturinha gerada, em seu colo. Chacoalhava a cabeça em descrédito – o mais profundo descrédito de todas as fés de sua vida de homem da lida e da Igreja. Na certa se perguntava onde estaria Deus naquela aberração toda, de que maneira uma concepção de tal natureza fora permitida – se é que o próprio Demo não a tivesse encomendado.
Como se voltasse de um transe, esticou-me os braços a ofertar a menina que ainda chorava e se revirava toda naquelas mãos grandes e gretadas, e repetia “nossas senhoras” e todos os tipos de súplicas e bordões próprios dos cristãos desolados. Como eu ainda não havia conseguido absorver um teco que fosse de toda a complicação, o homem acabou por ver-se obrigado a recorrer a qualquer espírito-santo que o valesse, na empreitada de elucidar o por ele próprio não compreendido.
Pediu-me licença e ainda reticente foi se aproximando da banqueta ao lado da cama onde eu descansava o corpo doído pela fenda mal feita e ainda aberta. Começou devagar o discurso explanatório, ou o que pudesse chegar mais perto disso. Finalmente, deu-se por satisfeito em apenas narrar os fatos, por mais absurdos que pudessem parecer. E o fez sem desviar o olhar da criança, num cuidado reverenciador e, ao mesmo tempo, amedrontado.
Ao sentar-se, esticou uma das mãos e alcançou um pedaço de linho cuidadosamente dobrado em cima da penteadeira de carvalho. O quarto era pequeno, e aqueles três móveis – cama, banqueta e penteadeira – já o preenchiam e conferiam-lhe uma atmosfera acolhedora. E aquele pedaço de linho tão alvo e liso, que eu pensei ser para estancar o resto de sangue que ainda não coagulara, foi embrulhar a menina. E o sitiante o fez com tamanha ciência que não seria difícil deduzir dois ou três filhos seus. E, dessa forma, haveria de se entender a pasmice do homem diante de acontecimento como aquele.
Depois de duas frases que serviram apenas para me situar naquele pedaço de terra, chamou a mulher e entregou-lhe a menina. Emerenciana, que era o nome da senhora magra e corcunda (apesar dos aparentes quarenta e poucos anos), levou-a do quarto e em seguida voltou com fósforos, agulha e náilon. O homem tornou a narrar o modo como havia me encontrado desacordado dentro de minha caminhonete, e como possivelmente ela havia sido “brecada” em uma mangueira velha da estrada que ligava seu sítio e o vilarejo.
Enquanto isso, Emerenciana riscou meia dúzia de fósforos e pretejou a agulha para esteriliza-la. Depois limpou o preto em um chumaço de algodão e passou o náilon no buraco. Feito o ritual de assepsia improvisada, puxou de debaixo da cama uma garrafa de cachaça branca e verteu-a quase inteira sobre meu tronco volumoso. Aquele líquido penetrou minha carne exposta como brasa nova e, enquanto urrava, retorcia-me em agonia com as poucas forças que ainda conseguia arrancar dos músculos embriagados.
Foi quando consegui aquietar-me que a mulher cravou os dedos nas extremidades da abertura em meu abdômen e enfiou a agulha. E, em movimentos precisos, desenhou um ziguezague de linha invisível de modo a esconder qualquer pedaço de entranhas que ainda desejasse aparecer, antes mesmo que eu pensasse em atirá-la à parede com um empurrão e me livrar de vez de todo aquele martírio. 
Olhou-me firme nos olhos, recolheu os instrumentos e saiu. O homem, que havia deixado de falar para dar lugar aos meus gritos e mal-dizeres, retomou a narrativa dos tempos de maneira fiel e, pelo que percebi, solidária à minha total ignorância de qualquer coisa que levasse ao fato último em toda a sua bizarrice. Contou-me como conseguira, com a ajuda do sobrinho moço e forte por causa do trabalho na terra, tirar-me do veículo mesmo com todo o meu peso de cinquentão obeso e diabético. E também como tinham me colocado em cima das sacas de milho de sua carroça e voltado prontamente para o sítio, pois meu estômago começara a contrair-se em demasia.
Descreveu em minúcias todos os movimentos normais e anormais que minhas entranhas realizaram no período de duas horas, e também as inúmeras táticas de que ele e Emerenciana se valeram na esperança de que eu despertasse daquele desmaio que mais parecia um coma. Cessou a fala por alguns segundos, como que para recuperar uma linha de memória que sequer fazia sentido, e foi quando tomou fôlego para recobrar as palavras, que os olhos esbugalharam-se novamente.
A voz ressurgiu mais baixa, quase um sussurro, mas logo foi crescendo à medida que apontava uma das mãos para minha barriga e media, com o polegar e o indicador da outra, o tamanho do pezinho que Emerenciana disse ter visto empurrando minha pele para fora: assim, ó! Ao que o homem arregalou novamente os olhos e eu parei meu tempo sobre aquela cena, a mão levantada mostrando um intervalo de uns três centímetros, e o doido afirmando um pé dentro de mim. Pior, uma criança inteira.

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