O HOMEM QUE DEU À LUZ UMA MENINA
- Parte 1 -
Eu não acreditaria se o
sitiante não o tivesse afirmado com tamanha convicção. Deduziria o desespero de
uma mãe miserável, ou talvez um cruel sequestro frustrado. Certamente toda a
história seria compreendida com naturalidade, fosse eu uma mulher. O fato é que
a mim, homem que sou, mesmo o choro rachado tendo mexido profundamente como se brotasse
do meu próprio peito, mesmo esse choro não fora suficiente para que eu
percebesse tamanha absurdeza.
A cena toda se desenhava como
uma infeliz ocasião em que um homem igualmente infeliz se refaz de um desmaio –
possivelmente ocasionado pelo calor intenso daquele cerrado mato-grossense –,
ao mesmo tempo em que o destino lhe entope os olhos com a imagem de uma criança
desamparada. Acontece que aquela criança, aquela menina recém-parida e ainda de
peles amarrotadas, não havia sido abandonada. Aquele bebê de choro magro tinha
era pulado, para o mundo, de dentro de mim.
E o sitiante fitava-me como
se eu fosse de outro planeta, e escorregava os olhos esbugalhados para o rasgo
sujo em minha barriga e depois para a criaturinha gerada, em seu colo.
Chacoalhava a cabeça em descrédito – o mais profundo descrédito de todas as fés
de sua vida de homem da lida e da Igreja. Na certa se perguntava onde estaria
Deus naquela aberração toda, de que maneira uma concepção de tal natureza fora permitida
– se é que o próprio Demo não a tivesse encomendado.
Como se voltasse de um
transe, esticou-me os braços a ofertar a menina que ainda chorava e se revirava
toda naquelas mãos grandes e gretadas, e repetia “nossas senhoras” e todos os
tipos de súplicas e bordões próprios dos cristãos desolados. Como eu ainda não
havia conseguido absorver um teco que fosse de toda a complicação, o homem
acabou por ver-se obrigado a recorrer a qualquer espírito-santo que o valesse,
na empreitada de elucidar o por ele próprio não compreendido.
Pediu-me licença e ainda
reticente foi se aproximando da banqueta ao lado da cama onde eu descansava o
corpo doído pela fenda mal feita e ainda aberta. Começou devagar o discurso
explanatório, ou o que pudesse chegar mais perto disso. Finalmente, deu-se por
satisfeito em apenas narrar os fatos, por mais absurdos que pudessem parecer. E
o fez sem desviar o olhar da criança, num cuidado reverenciador e, ao mesmo
tempo, amedrontado.
Ao sentar-se, esticou uma
das mãos e alcançou um pedaço de linho cuidadosamente dobrado em cima da
penteadeira de carvalho. O quarto era pequeno, e aqueles três móveis – cama,
banqueta e penteadeira – já o preenchiam e conferiam-lhe uma atmosfera
acolhedora. E aquele pedaço de linho tão alvo e liso, que eu pensei ser para
estancar o resto de sangue que ainda não coagulara, foi embrulhar a menina. E o
sitiante o fez com tamanha ciência que não seria difícil deduzir dois ou três
filhos seus. E, dessa forma, haveria de se entender a pasmice do homem diante de acontecimento como aquele.
Depois de duas frases que
serviram apenas para me situar naquele pedaço de terra, chamou a mulher e
entregou-lhe a menina. Emerenciana, que era o nome da senhora magra e corcunda
(apesar dos aparentes quarenta e poucos anos), levou-a do quarto e em seguida
voltou com fósforos, agulha e náilon. O homem tornou a narrar o modo como havia
me encontrado desacordado dentro de minha caminhonete, e como possivelmente ela
havia sido “brecada” em uma mangueira velha da estrada que ligava seu sítio e o
vilarejo.
Enquanto isso, Emerenciana
riscou meia dúzia de fósforos e pretejou a agulha para esteriliza-la. Depois
limpou o preto em um chumaço de algodão e passou o náilon no buraco. Feito o
ritual de assepsia improvisada, puxou de debaixo da cama uma garrafa de cachaça
branca e verteu-a quase inteira sobre meu tronco volumoso. Aquele líquido
penetrou minha carne exposta como brasa nova e, enquanto urrava, retorcia-me em
agonia com as poucas forças que ainda conseguia arrancar dos músculos
embriagados.
Foi quando consegui
aquietar-me que a mulher cravou os dedos nas extremidades da abertura em meu abdômen
e enfiou a agulha. E, em movimentos precisos, desenhou um ziguezague de linha
invisível de modo a esconder qualquer pedaço de entranhas que ainda desejasse
aparecer, antes mesmo que eu pensasse em atirá-la à parede com um empurrão e me
livrar de vez de todo aquele martírio.
Olhou-me firme nos olhos,
recolheu os instrumentos e saiu. O homem, que havia deixado de falar para dar
lugar aos meus gritos e mal-dizeres, retomou a narrativa dos tempos de maneira
fiel e, pelo que percebi, solidária à minha total ignorância de qualquer coisa
que levasse ao fato último em toda a sua bizarrice. Contou-me como conseguira,
com a ajuda do sobrinho moço e forte por causa do trabalho na terra, tirar-me
do veículo mesmo com todo o meu peso de cinquentão obeso e diabético. E também
como tinham me colocado em cima das sacas de milho de sua carroça e voltado
prontamente para o sítio, pois meu estômago começara a contrair-se em demasia.
Descreveu em minúcias todos
os movimentos normais e anormais que minhas entranhas realizaram no período de
duas horas, e também as inúmeras táticas de que ele e Emerenciana se valeram na
esperança de que eu despertasse daquele desmaio que mais parecia um coma.
Cessou a fala por alguns segundos, como que para recuperar uma linha de memória
que sequer fazia sentido, e foi quando tomou fôlego para recobrar as palavras,
que os olhos esbugalharam-se novamente.
A voz ressurgiu mais baixa,
quase um sussurro, mas logo foi crescendo à medida que apontava uma das mãos
para minha barriga e media, com o polegar e o indicador da outra, o tamanho do
pezinho que Emerenciana disse ter visto empurrando minha pele para fora: assim,
ó! Ao que o homem arregalou novamente os olhos e eu parei meu tempo sobre
aquela cena, a mão levantada mostrando um intervalo de uns três centímetros, e
o doido afirmando um pé dentro de mim. Pior, uma criança inteira.
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