quarta-feira, 4 de abril de 2012

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Instantâneos

Dezoito excertos de, e duas palavrinhas sobre, “O fotógrafo”, de Cristovão Tezza.

“...o Brasil é uma concentração estúpida de gente em subespaços esmagados e inabitáveis rodeados de um vazio continental.”

“Para o renascimento, ela determinou-se, é preciso controlar também essas pontas ressentidas: muitas coisas que podia ter ou ser e que se esvaíam, com os dias, pelos longos dedos da mão.”

“Não há grandeza nenhuma em estar sozinho, ao contrário do que parece – a solidão é só a forma discreta do ressentimento: quem disse isso? Era como se a conversa do homem e a memória de Lídia se misturassem. O pior que pode acontecer aceitando esse trabalho é você ganhar dinheiro, ele mesmo se disse, no elevador, os 200 dólares no bolso.”

“Você quer saber por que tudo é ressentimento? Porque morremos no fim. Ressentir contra Deus é inútil. Assim, ressentimos contra os outros, que nos atravancam; ou contra ninguém, sozinhos, na nossa toca escura. É isso que você quer? Essa cidade, como todas as outras, quer exatamente isso de você. Não aceite, recuse, saia para fotografar o mundo.”

“Jesus te ama, o homem repetiu sorridente, abrindo a gaveta de onde tirou as duas notas novas, estalantes, cheirosas. Vá em frente.”

“A menina acomodou-se a mesa, surpreendentemente tranquila: a mãe nervosa como que eletrificava a casa inteira, reduzindo-a a um silêncio expectante e temeroso. Eu não preciso de muita coisa para viver, ele calculou; sou um ser mínimo, leve, transparente. Praticamente não ocupo espaço, mesmo com um peso um pouco acima da média, e ele sorriu, pensando em dizer isso em voz alta, alguém que faz uma piada e pede paz. Deu mais um gole de cerveja.”

“Danton olhou para ela e viu, deve ter visto, ela imaginou, que Íris estava prestes a chorar, é a tal pornografia, coisa que nos transforma sem passar pela alma, só pela mecânica dos nervos. A prostituição, disse dona Mara – por isso, só por isso, não foi hoje à sessão. Terá de pagar pela falta. As pessoas pensam que sabem o que está na nossa cabeça e na nossa pele, ela pensou, lembrando o dia em que fez a tatuagem no tornozelo, aquelas asinhas doídas, ponto a ponto. Ao gemer, ela lembrou – a imagem familiar do vulto voltando segundo a segundo – ele disse algo como ‘espere’ ou ‘aguarde’, ou ‘você vai ver’, ou ‘eu vou pegar você’. Talvez não tenha dito nada, ela fechou os olhos tentando se transportar para aquele segundo, mas era isso que ele diria se a dor do chute no saco que ele levou o deixasse falar; mas ele gemeu alto falando. E eu estou com medo.”

“Debruçou-se com a lupa em outro fotograma: agora ela estava em pé, nítida no quadro da porta daquela cozinha sem foco, e o sol, num instante, derramou-se sobre ela pelas beiradas como um bico de pena ao avesso fazendo o contorno de luz de todas as coisas. Íris era uma sombra, mas o rosto, no instante da foto, voltou-se para ele e a luz como que se propagava nela. Deteve-se no rosto: é por isso que eu amo os retratos, ele pensou. Agora havia surpresa, e a lupa lhe dizia, era uma mulher surpreendida que ele via, suspensa no gesto do tempo, olhando firme para ele, quase inquisitiva; mais um segundo e a surpresa teria dado lugar à pergunta.”

“A minha composição é sempre conservadora – uma vez lhe disseram; se ela chega a ser clássica, ótimo; se fica no meio do caminho, o fotógrafo está morto. Mas este enquadramento está perfeito, ele teimou, como uma vingança infantil contra o exército digital: essa foto não precisa ser recortada – o olhar do fotógrafo e o olhar de Íris se bastavam.”

“Em pouco tempo, se ele fosse um bom feiticeiro, veria a sua Íris surgindo, do nada, sombra a sombra, na folha em branco: era o momento de seu trabalho, cada vez mais raro, que parecia não perder o sopro do encantamento, como se ainda ouvisse o sussurro do tio aprovando sua perícia e seu talento.”

“Acordou suado, no clímax de um sonho que não lembrou nada no segundo seguinte: alguma coisa escura, tentou pensar, e levou um lapso de tempo até voltar a terra, aqui e agora, como uma fita que se rebobina, imaginou. Interrompeu o gesto de acender a luz da cabeceira lembrando-se da mulher que, nua, o abraçava ressonante sobre o lençol – uma noite quente. Com delicadeza, desvencilhou-se do braço que o enlaçava, e a mulher, um bebê que se ajeita na oitava nuvem do sono, virou-se para o lado, agora em silêncio absoluto.”

“Ela acordou de um sonho devastador e, ao abrir os olhos para a escuridão do quarto, tateou a cama e descobriu-se só. Procurou o interruptor da luz de cabeceira e a luz como que lhe devolveu um senso brutal de realidade, naquele instante não muito melhor que o sonho, do qual, aliás, se esqueceu imediata e completamente. Fez um esforço inútil para lembrar-se dele, mas isso funcionou apenas como um álibi para não acordar – e a memória recusava a servi-la. Sonhei nada, ela se disse, pensando vagamente que horas seriam e onde andaria seu fotógrafo, e sentou-se na cama, totalmente acordada agora, mais um dia irrevogável. O mau humor das manhãs, ela relembrou o que ouviu a vida inteira de sua mãe – custava a sintonizar o mundo para enfim se mover.”

“É preciso recuperar os sinais por onde andei para saber onde estou exatamente.”

“E encheu outro cálice, o último, brindando à porta fechada por onde entrevia o vulto imaginário de seu antigo fotógrafo chegando para ouvir dela, enfim, claramente, nitidamente, palavra por palavra, uma coisa de cada vez, que as pessoas se transformam, e isso é muito bom.”

“Ele sentiu alguma coisa pesada e o coração começou a bater mais forte. Deu outro gole no vinho, vigiado pelo olhar devastador de Íris. Podia sentir a sua aura diante dele, e com ela um toque de medo. Ela é mais alta do que eu, ele calculou, vendo as sombras das cabeças na parede, e os dedos brancos e longos de Íris batendo o cigarro no cinzeiro; ele ouvia a respiração dela, e lutou para não se amedrontar – isso não é nada, ele se disse, olhando o cálice; é um encontro fortuito que se transforma em confissão, e, através dela, em purificação...”

“...era só um escapismo, eu sei. As coisas não dão certo de um jeito e daí você imediatamente inventa uma moda para justificar, uma espécie de álibi. Não é assim? Você diz que está num lugar mas nunca esteve nele. – Ela riu, pensando no que tinha acabado de dizer. – Alguém me disse que eu podia ser modelo e... bem, muitas vezes me disseram isso. – E como se ela quisesse confirmar a consistência do que diziam, abriu de novo o envelope e de novo se concentrou em ver-se, mas agora com uma dureza no olhar, sem admiração nem autopiedade, ele avaliou, agora ela estava vendo também o olhar dele, fotógrafo, e no fundo tentava descobrir o que aquele olhar tinha de verdade, no que aquela imagem equilibrada em preto e branco, no que aquela delicadeza em chiaroscuro teria parentesco com ela mesma. Agora – ele continuou avaliando, dando mais um gole de vinho e tentando ganhar tempo – parece que o sonho acabou, é isso que está no rosto dela, alguma descoberta; é como se ela visse um longo filme naquela imagem que do papel olhava para ela, e ali fosse se decifrando – a fotografia como espécie de chave, ele pensou, tentando adivinhar o que era a umidade dos olhos de Íris, se fumaça, se lágrima, se pornografia, ela pensou, tentando se controlar, aquilo sobre o que não temos controle, e mordeu o lábio devagarinho para não se entregar enquanto se via assim, tão bonita no papel e tão desesperadamente inútil na vida real...”

“– Porque o dinheiro não é tudo na vida – e, primeiro ele, depois ela, caíram na gargalhada, como quem enfim descarrega a eletricidade de um dia inteiro.”

“– Fotografar, é claro. – E ela abriu mais uma vez o envelope. – São as duas melhores fotografias da minha vida. Só quem ama o que faz poderia me ver assim – ela acrescentou, como um enigma.”

Lançada originalmente no ano de 2004 – e apreciada em sua segunda edição, revista, do ano de 2011, pela Editora Record – a obra descreve o drama psicológico de umas poucas personagens que se desenvolve ao longo de um único dia na cidade de Curitiba.

Um livro sobre a dicotomia dos anseios e das inseguranças no universo interior frente à crueza do quotidiano; também sobre a interação dessas polaridades na determinação de certo grau de aleatoriedade na dinâmica das relações estabelecidas entre as criaturas.

1 Comentário

andre albuquerque

Jorge: Excelente seleção de um grande escritor , que desnudou a alma com "O filho eterno".Abraço.André