sexta-feira, 20 de abril de 2012

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O Quadro

          Chegavam taciturnas, sem hábito de sorrir, sem interesse pela existência, sem vontade de viver, revoltadas. Eram criaturas desorientadas, sem saber o que fazer, o que iniciar porque – costumavam dizer – tudo implica em gasto, até pensar!
Muitas vezes choravam de repente e eu me assustava – talvez não soubesse lidar com elas...
-Na favela sempre acontecem coisas – explicava Luana, mocinha morena e bonita -, espancamentos, implicância das vizinhas – as mulheres são piores -, adultério, maledicência. E todas, novas ou mais velhas, todas têm problemas com os homens. Criados sem valores, sem freios, sem disciplina, eles estão sempre metidos em confusão com a lei, com suas várias mulheres. Estas e os filhos vivem juntos, muitas vezes na mesma casa, na maior promiscuidade. E há também os barracos das meretrizes. Nesse meio promíscuo, a violência se atiça, cresce feito mato daninho. Na favela tudo que inicia termina com briga. Os que conseguem viver até a hora da morte são heróis. Às vezes dá mesmo vontade de chorar, chorar sem parar até morrer.
Luana era uma guerreira; fazia faxinas pesadas todos os dias da semana para sustentar um casal de filhos e ainda criava o filho de um irmão que estava preso. Descansava somente no dia da aula de pintura em tela e era minha melhor aluna.
 Talvez como uma compensação para uma situação tão angustiante, seus quadros ficavam excepcionais e acabaram atraindo a atenção dos frequentadores da galeria Portland.
As suaves pinceladas dançantes do “ Jardim” transmitiam sensibilidade, inspiração, brilho próprio da artista. O quadro iluminava qualquer ambiente e Luana não quis vendê-lo. Preferiu expô-lo na parede maior do seu barraco onde, como por magia, iluminava não só a sala obscura e feia, como também a sua vida tão atribulada, enchendo-a de paz e beleza.
            O barraco de Luana virou atração na favela. As mulheres principalmente achavam que o quadro era mágico; só de olhá-lo, resgatavam sua autoestima, sentiam-se quase bonitas.
Um dia o quadro desapareceu. Os barracos não tinham qualquer segurança, eram tão vulneráveis! Luana desesperou-se. Eu também, mas alguns dias depois, o quadro reapareceu.  A ladra – Luana sabia que era mulher – o devolvera por respeito ao sofrimento de Luana, por medo ou superstição. Quem sabe?
Hoje ele está aqui, bem na minha frente, no XI Salão de Outono Estou aqui na Avenue des Champs Elysées, eu, Irene, abandonada pelo marido, pelos três filhos espalhados por aí, pelo mundo, eu, Irene, que não ganhei prêmio algum em toda minha vida de dedicação e trabalho, eu, Irene, de repente me sinto recompensada. Olho para Luana, pensando que afinal a gratificação veio, sempre vem, de onde menos se espera,mas vem.

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