terça-feira, 10 de abril de 2012

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PAIXÃO

Na varanda, debruçada sobre mim, uma vontade natural de voar. A noite acolchoa as vísceras incômodas e o luar se esconde para não testemunhar a alquimia. Transformo vinho em água. Não faço outra coisa que não aguar desde menina. Acende-se a luz amarelada em frente ao sonho. Perturba-me o silêncio da janela fechada lá longe. Prefiro o som das mangueiras esguichando, o óleo... na superfície lisa refletindo cores. O velho cheiro urbano de problemas. Pessoas nos ônibus, sacolas de compras, carros que vão e vêm, todos distantes, ainda bem. Eu estou distante e reluto em chegar à varanda. Quero o manto nublado de encobrir esperas. Pesa-me a cruz. Tantas cruzes, cicatrizes, contusões. Preciso da chuva das sextas-feiras santas para lavar o sangue que circula em minhas veias desde sempre. Meu sangue contaminado de poesia. Estúpido ofício. Não aprendi a gritar em silêncio. Não me ensinaram a desconfiar de versos simples. Não sei fazer mais nada, senão esperar. Meu pai tinha um pó de fechar as chagas. Devia ter-me pulverizado em carne viva, me coberto inteira. Mesmo assim não curaria aquela que não sara, que não seca, que escoa pelo canto do olho. Não gosto da varanda à noite. Não gosto de mim à noite. Não gosto de meia-noite. Não há um pingo de chuva. Não há uma gota de mim.


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2 comentários

Anônimo

Profundo são os sentimentos encontrados no texto, assim como é sincera o desalento. Essas palavras merecem, não uma simples leitura na tela, às pressas; mas uma pausa.

Parabéns pelo texto. A escrita literária é por aí, exalando emoção.

Ronperlim

O comentário que surge como anônimo é de minha autoria.