sexta-feira, 20 de abril de 2012

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Tote

Estava no limite, sabia disso, e só havia mesmo uma saída: liquidar de uma vez por todas aquele velho sovina. Aí, quem sabe, cheio da grana, Antônia finalmente lhe desse atenção, largasse aquela estúpida vida fácil, e ambos trocariam o pulgueiro do Santa Eulália por um flat nos Jardins ou algo melhor, viver de love love love com a grana que o velho escondia, ah!, muito bom.
Mas antes era preciso tomar a providência, calar a boca daquele pedaço de mofo que era o pai, fazer tudo nos conformes e direitinho sem deixar pistas pros canas. Mas... como?
Bodão, o traficante do apê em frente, talvez pudesse dar a dica, indicar alguém pra fazer o serviço, mas o puto nunca atendia a porta, parecia mesmo um fantasma. Dele só se ouvia falar que fazia e acontecia e isso & aquilo — mas se fosse mesmo verdade, e isso era chato de reconhecer, o sujeito jamais estaria vivendo ali naquela pocilga. Traficante sem clientes, sem o entra e sai constante dos usuários, onde é que já se viu?
Aristóteles, o Tote, do Santa Eulália só queria mesmo os olhares de Antônia, nada mais, fosse ela puta ou não. Um calor lhe crescia por dentro só de pensar nela, e considerava que aquilo era quase uma missão divina, trazer de volta a mulher ao bom caminho, mesmo que o bom caminho fosse ele, um picareta que tramava a eliminação do próprio pai. O calor por dentro, o calor.
Quando viu as chamas nas pontas dos seus dedos, tudo o mais desapareceu da sua mente: Antônia, o velho mão-de-vaca, a boa vida que sonhava para o futuro. Fogo nas mãos, nos dedos? Olhou mais uma vez e nada, nada estava lá. Delírio. Um delírio apenas.
   ***
Desde aquele dia nada mais foi como antes: volta e meia Tote via as chamas surgindo do nada, o próprio pai em chamas, a exuberante beleza de Antônia virando fumaça. Bastava piscar, no entanto, para tudo voltar ao normal, cada coisa em seu devido lugar.
Maluco, pensava ele, tô ficando maluco. É desse velho aí que eu preciso me livrar o mais rápido possível. O velho, alheio ao que se armava à sua volta, passava os dias vegetando e suas únicas diversões eram as lembranças do dinheiro que mantinha trancafiado numa conta secreta, e as aranhas — que brotavam dos bolsos do pijama, da sua boca, as aranhas que se encontravam em todo o maldito Santa Eulália, como se o prédio fosse todo ele um grande ninho daqueles seres peludos e asquerosos.
Quando viu a grande aranha em chamas na escada que descia do sexto andar para o seu, Tote pensou ter encontrado a solução: bastava juntar um punhado daqueles bichos e despejar tudo sobre o pai, a autópsia revelaria apenas uma dose elevadíssima de veneno no corpo já debilitado do velho e o próprio Santa Eulália seria o culpado. Sairia limpinho da história, pobre filho desamparado por uma fatalidade lamentável. Aí era só voltar aos antigos planos e torrar a grana toda com Antônia, sim, Antônia — que o ignorava tanto quanto a um fantasma.
***
Desde que teve a ideia brilhante, Tote mudou o seu comportamento em relação ao pai. Passou a tratá-lo com atenção, coisa que o velho, mesmo em pleno estado senil, estranhou. O fogo, no entanto, esse foi se intensificando: a todo o momento via as cortinas ardendo, o fogo se precipitava junto às gotas de água que caíam do chuveiro, labaredas lambiam os móveis, seu próprio corpo ardia sem dor alguma. Mesmo quando deixava o apartamento, o fogo estava presente: na porta do Bodão, que jamais dava as caras, e também na porta do seu apartamento, escura, como se tivesse sido queimada durante a madrugada. As paredes, quando encostava a mão ou os dedos, deixavam marcas escuras, o cheiro inconfundível de material queimado. Era uma cena de incêndio, sim — mas que incêndio? O único fogo que lhe queimava de fato era aquele dirigido à Antônia.
***
Decidido a recolher quantas fossem as aranhas necessárias para atingir os seus objetivos, Tote se lançou numa busca por todo o Santa Eulália. Sabia que a fonte ficava no andar de cima — mas não estava nem um pouco disposto a pedir: talvez o criador de aranhas começasse a fazer perguntas, quisesse saber além da conta, sem dizer que, numa possível apuração da real causa mortis do velho, os canas chegariam rapidamente ao criador, que o entregaria num piscar de olhos.
Não precisava de testemunhas, portanto. Como os corredores do Santa permaneciam vazios a maior parte do tempo, seria muito fácil conseguir os bichos, centenas deles, e ninguém veria nada.
Quando encontrou a primeira aranha, não enorme como a anterior, mas uma minúscula, cuja espécie não sabia definir, partiu para cima dela com uma ansiedade quase adolescente. Imediatamente a aranha explodiu em chamas, assustando-o. Logo depois, nada mais havia diante dos seus olhos: nem aranha, nem fogo.
Que porra!, disse, intrigado. Após um breve momento, tudo voltou a se repetir: parecia que todo o antigo prédio rangia num lamento, e o calor se intensificava cada vez mais. Das paredes escorria uma substância quente e flexível, que formava poças no chão, e um cheiro de fumaça que o fazia tossir e engasgar. 
Deixando de lado as aranhas, desceu rapidamente do quinto andar para o quarto, e lá não foi diferente: o mesmo cheiro terrível de fumaça, as paredes derretendo, as línguas de fogo escapando pelos vãos das portas fechadas.
Era, de fato, um incêndio, não restava a menor dúvida. Não havia extintores, em breve a fiação exposta começaria a lançar faíscas e labaredas para todos os lados, a madeira antiga e mal-cuidada transformaria o Santa Eulália num grande e impressionante churrasco. Somente aqueles que estivessem do lado de fora sobreviveriam. 
Do lado de fora! O velho não teria fôlego para descer cinco andares — e Tote não estava nem um pouco disposto a bancar o herói. Desceu correndo, portanto, em direção à portaria, prontinho para deixar o fogo, e não as aranhas, fazer o trabalho sujo. E se Antônia ainda estivesse lá dentro? Isso o fez hesitar. Depois de Caroline, aquela metidinha a modelo, ela era agora o amor da sua vida, a sua grande paixão — mas não enfrentaria as chamas por causa dela, não voltaria. Foda-se!, pensou ele, que ela torre junto com o meu pai!
Quando chegou enfim à portaria, a decepção: tudo parecia em ordem, do lado de fora as pessoas caminhavam como se nada estivesse acontecendo naquele pulgueiro, e o único incêndio era o da sua imaginação.
Confuso, deu as costas para a rua e voltou à escada. Subiu então para o primeiro andar, preocupadíssimo: não conseguia explicar a si mesmo o que estava acontecendo; via coisas, fogo onde não havia, aranhas explosivas... Que merda! Se estivesse, pelo menos, consumindo os produtos do Bodão, OK, poderia atribuir as alucinações àquilo, mas andava mais careta que a beata do 42, mais santo que um santo de verdade. Como explicar, como se explicar aquilo?
Praga do velho, com certeza, que não morria e não se deixava matar. Ou mesmo inveja braba dos moradores mais antigos do Santa Eulália, da maldita Dona Neuza e sua maritaca ambiciosa, que sabiam que ele em breve botaria as mãos na grana preta do velho moribundo — sim, só podia ser.
***
Entre o primeiro e o segundo andar, Tote voltou a sentir o calor atrás de si, só que um calor dessa vez ainda mais intenso, o ranger das paredes mais pronunciado, vozes mesmo que gritavam desesperadas fogo fogo fogo!
Degrau após degrau, Tote via agora centenas de aranhas em chamas, as patas para cima, cada uma delas se consumindo em pequenos pontos vermelho-alaranjados.
Não acreditando mais nos próprios olhos, nem nos ouvidos, Tote seguiu subindo, irado, já disposto em colocar em prática o seu plano com as próprias mãos. Bastava sufocar o velho com um travesseiro — todos sabiam que ele apresentava sérios problemas respiratórios há anos, por que prolongar aquele sofrimento? Sofrimento duplo, aliás: do velho, que preferia viver naquele imenso latão de lixo a pagar um apê mais decente, e dele mesmo, que vivia às suas custas como um inútil, submetido às mais diversas humilhações e ao poder da grana acumulada ao longo dos anos, grana que poderia ser bem melhor utilizada por ele, ainda jovem e saudável — e por Antônia também, que se livraria de uma vez por todas da putaria pra ser só sua.
Foi pensando dessa maneira que Tote passou a subir os degraus aos saltos, ignorando por completo o inferno que se espalhava às suas costas. As sirenes e os gritos que ouvia, tudo isso não o afetava, era só delírio, aquele delírio ao qual estava submetido fazia algum tempo. Tudo coisa da minha imaginação, pensava, bobagem, bobagem.
Mesmo quando encontrou seu próprio apartamento em chamas, Tote não ligou. A porta caída e a fumaça negra que saía do interior não o intimidaram. Lá dentro, a devastação era total: o fogo lambia todo o ambiente, do chão ao teto, e no quarto do pai, na cama ocupada por ele, encontrou apenas um corpo carbonizado, escuro, os olhos arregalados de puro pavor.
Contrariando qualquer expectativa diante de tais circunstâncias, Tote sorriu. Livre, enfim! Poderia agora torrar aquela grana toda, ele e Antônia! Bastaria aguardar os trâmites legais para receber tudo aquilo como herança, sem contar o dinheiro do seguro do apartamento.
Ignorando que as suas próprias roupas já estavam em chamas, Tote desceu em direção ao apartamento de Antônia. Sabia que ela não recusaria proposta tão tentadora. O fogo à sua volta, os gritos, as sirenes, a densa fumaça, tudo aquilo não passava de alucinação. Incêndio o caralho! Não caio nessa outra vez!
Quando chegou ao terceiro andar, depois de saltar lances de escada queimados, desviar de paredes desmoronando, lá estava ela, Antônia, derretendo feito uma vela, toda a sua beleza escorrendo para o chão.
— Vem, meu amor, vem, vamos viver — disse Tote para o fogo, ignorando completamente que quem de fato derretia era ele. 

Este conto faz parte da coletânea Fragmentos do Inferno, lançada em dez/2011 pela Editora Estronho. 
Saiba mais sobre o livro AQUI

1 Comentário

Betusko

Destampou a entrada da caverna do seu próprio inferno. Excelente conto do gênero Fantástico.
Abraços!