quinta-feira, 24 de maio de 2012

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CONTAÇÃO: "Feijão com louro" - por M.Mei






FEIJÃO COM LOURO


Nasci numa cidadezinha no interior de São Paulo, de quase quarenta mil habitantes e vizinha do inferno. Sim, porque a cidade arde: ruas, muros e árvores, tudo arfa de sede diante do bafo sufocante do dono da casa ao lado. Foi por isso que na primeira oportunidade da vida arrumei as malas, esperei uma brisa leve e fui embora. Encontrei ares mais agradáveis, sem dúvida, mas nunca deixei de retornar vez ou outra à minha cidade-berço. Porque é lá naquele solo ardente que estão fincadas minhas raízes, tão acostumadas ao sol a pino que mudá-las seria o mesmo que arrancar-lhes a vida. Eu, folha que sou, desprendi-me para piruetar por outros ventos.

Mas enganam-se aqueles que me pensam desertora. Sou filha saudosa, amo o retorno e seu significativo acolhimento. Meu alimento é a nostalgia, é o afago que lembra a infância quente como a casa do capeta. Talvez porque o banho no calor seja mais refrescante, e o sorvete tomado às pressas muito mais saboroso. E desses rituais de minha meninice embalados pelos ares cálidos da cidade, guardo um particularmente feliz: almoçar aos domingos na casa da avó. Coisa boa demais ainda poder repetir isso de vez em quando. Talvez pela delícia de acordar minha criança, talvez pela certeza de nunca esquecê-la.

Domingo é um dia muito chato para ficar sozinha. Bom mesmo é almoçar na casa da Vó! Despertar com o sol já quente e tomar café forte com leite frio enquanto assisto beija-flores e abelhas a disputarem a atenção dos camarões-vermelhos do jardim de minha mãe, rubros de vergonha diante de tamanha corte. E, logo em seguida, sacolejar o espírito na ducha gelada a fim de aliviar o calor da cidade já fervente para, enfim, ir almoçar na casa da Vó... Porque bom mesmo é cheirinho de comida no fogão misturado ao cheiro de Vó, coisa que só criança entende, e depois some com a idade.

O aroma do louro do feijão convida já da calçada e atiça a fome gostosa do conforto da saudade de uma infância que já acena de muito longe, do Vô que volta em silêncio para nos abraçar. Porque domingo solitário é muito chato, faz a gente nostálgica sentir falta de tudo isso e entristecer com aquela angústia apertando o peito até a segunda-feira. E então a semana se arrasta no torpor da quentura da cidade, mesmo que eu já tivesse retomado a estrada. Qualquer janela no caminho do trabalho que exale o louro encaldado é convidativa, mas de fácil resistência. Porque falta a voz da Vó na cozinha, a cristaleira embebida em vinho do Porto, o sofá velho que traz o abraço do Vô.

Logo é domingo novamente e estou longe da cidade onde nasci. Coloco a coberta nos ombros, mesmo estando quente dentro de casa. Quero sentir a baforada da minha infância a papear de longe, a se lambuzar de longe com o feijão que cheira à Vó. Esse monte de lã sobre minhas costas é meu avô a me acolher em boas vindas.

***



Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .  

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2 comentários

Jorge Xerxes

Mariela,

Gostei de Seu Texto!

"Meu alimento é a nostalgia, é o afago que lembra a infância quente como a casa do capeta."

Saudoso e Instimista.

Um Beijo, Jorge

M.Mei

Obrigada, Jorge! Esse texto fala um pouco de mim. De verdade...
Beijos