O HOMEM QUE DEU À LUZ UMA MENINA
- Parte 2 -
Comecei a sorrir enquanto
imaginava qual seria o golpe que o casal aparentemente simpático pensava em me aplicar,
como se eu fosse algum incapaz ou, no mínimo, tolo demais a ponto de acreditar
em tamanha sandice. O sitiante parou de falar, abaixou os braços e apertou os
olhos. Como se tivesse ouvido meus pensamentos começou a esbravejar, disse ser
um homem honesto e que nunca tentaria enganar quem quer que fosse, nem mesmo um
desconhecido. Que havia salvado minha vida e a daquela criança, e que seria
muito indelicado se eu não tentasse ao menos ouvir a história toda que, em suas
próprias palavras, nem ele entendia.
Tornei-me sério e
interessado novamente, não por perceber ali um homem claramente ofendido com
minha insinuação, mas pela mais ordinária curiosidade, talvez um tanto de
canalhice – ver até onde a loucura humana poderia se estender, escarafunchar a
fantasia e a tolice alheias, alimentar uma não-realidade até que ela se
confunda com a própria realidade.
E foi por isso, e talvez só
por isso, que o homem tornou sabido a mim que, tão logo Emerenciana disse ter
visto o contorno do pé, ele e o sobrinho deitaram meu corpo mole em cima da
cama e o moço saiu logo em direção ao vilarejo a fim de trazer uma parteira ou
algo que pudesse tirar a criatura de dentro de mim. E também que a parteira
logo veio, olhou o homem em cima da cama e saiu em disparada, mal-dizendo as
almas e os protetores daquela casinha de cristãos, como se tivessem travado
acordo com O Sem-Nome.
O homem contou-me também
que Emerenciana, mulher vitoriosa desde que a mãe tentara em vão fracassar-lhe
a vida ainda no ventre, tomou uma estatueta de São Judas Tadeu em uma das mãos
e invadiu o quarto onde ele rezava ao pé de minha cama. Na outra mão portava
uma peixeira que costumava usar para despescoçar as galinhas e uma corda, com a
qual amarrou o santo na cabeceira da cama antes de meter a faca naquele meu
estômago inquieto.
Em menos de três minutos
encontrou, em meio a capas de gordura e muito sangue, uma menina desassossegada,
que logo disparou o choro a fim de mostrar sua insatisfação em relação ao mundo
e ao ventre a que fora designada. Não parou mais de berrar até que Emerenciana
tirou o peito pra fora e meteu-lhe na boquinha rosada, e a menina sugou e sugou
até mirrar completamente a mama direita da mulher. Dormiu entre suas coxas
grossas, embalada pelas súplicas de perdão do sitiante diante de uma cruz
pendurada frente à porta de entrada da casinha modesta.
O sitiante suspendeu a fala
novamente e deixou o olhar se perder nas frestas do chão de madeira enquanto
aguardava pacientemente qualquer reação minha. Então, de súbito, perguntei como
é que ele achava que eu não teria percebido qualquer coisa crescendo dentro de
mim sem ao menos procurar entendimento. O homem olhou-me e sorriu ao dizer que
eu tinha “corpo de sobra para esconder um bezerro”, referindo-se à minha
obesidade. E arregalou os olhos mais uma vez, levou o dedo indicador à orelha e
chamou minha atenção ao barulho que novamente se iniciava na sala.
Aquele choro me doía no
peito, como se realmente fosse parte de mim. Enquanto ele não cessava, comecei
a me questionar a possibilidade de algo assim, e se tamanho absurdo fosse
realmente o que havia se sucedido. Tão logo a casa silenciou novamente, pedi
que o sitiante me deixasse descansar um pouco para mais tarde continuarmos a
conversa. Ele se levantou e saiu, mas antes que fechasse a porta eu pude ver a
menina dependurada em um dos peitos de Emerenciana, e também o rosto de
Emerenciana, vermelho e sereno.
Logo a noite chegou e eu
fingia o sono quando a mulher penetrou o meu quarto. Trazia uma caneca de leite
e um pedaço de pão, e os colocou na banqueta ao lado da cama. Por um talho de
olhar pude ver, quando Emerenciana se debruçou sobre a cama para ajeitar as
cobertas, o peito murcho que há pouco alimentava a criança que eu parira.
Algumas horas depois
arrisquei levantar-me e, um tanto tonto, cambaleei o corpo ainda dolorido até a
porta. Espiei por uma fresta, a fim de conferir o sono de todos, e finalmente
adentrei a sala. O sitiante e a mulher dormiam em um cobertor estendido no
chão, abraçados. Antes de abrir a porta de entrada da casa olhei dentro de um
cesto de vime em cima da única cadeira. A menina balançava os braços e as
pernas, e olhava para mim. Senti um repuxão na barriga, que sangrava pelo
curativo.
Com a mão segurando as
entranhas, fechei a porta depois de sair.
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