quinta-feira, 3 de maio de 2012

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CONTAÇÃO: "O homem que deu à luz uma menina - Parte 2" - por M.Mei





O HOMEM QUE DEU À LUZ UMA MENINA

- Parte 2 -


Comecei a sorrir enquanto imaginava qual seria o golpe que o casal aparentemente simpático pensava em me aplicar, como se eu fosse algum incapaz ou, no mínimo, tolo demais a ponto de acreditar em tamanha sandice. O sitiante parou de falar, abaixou os braços e apertou os olhos. Como se tivesse ouvido meus pensamentos começou a esbravejar, disse ser um homem honesto e que nunca tentaria enganar quem quer que fosse, nem mesmo um desconhecido. Que havia salvado minha vida e a daquela criança, e que seria muito indelicado se eu não tentasse ao menos ouvir a história toda que, em suas próprias palavras, nem ele entendia.
Tornei-me sério e interessado novamente, não por perceber ali um homem claramente ofendido com minha insinuação, mas pela mais ordinária curiosidade, talvez um tanto de canalhice – ver até onde a loucura humana poderia se estender, escarafunchar a fantasia e a tolice alheias, alimentar uma não-realidade até que ela se confunda com a própria realidade.
E foi por isso, e talvez só por isso, que o homem tornou sabido a mim que, tão logo Emerenciana disse ter visto o contorno do pé, ele e o sobrinho deitaram meu corpo mole em cima da cama e o moço saiu logo em direção ao vilarejo a fim de trazer uma parteira ou algo que pudesse tirar a criatura de dentro de mim. E também que a parteira logo veio, olhou o homem em cima da cama e saiu em disparada, mal-dizendo as almas e os protetores daquela casinha de cristãos, como se tivessem travado acordo com O Sem-Nome.
O homem contou-me também que Emerenciana, mulher vitoriosa desde que a mãe tentara em vão fracassar-lhe a vida ainda no ventre, tomou uma estatueta de São Judas Tadeu em uma das mãos e invadiu o quarto onde ele rezava ao pé de minha cama. Na outra mão portava uma peixeira que costumava usar para despescoçar as galinhas e uma corda, com a qual amarrou o santo na cabeceira da cama antes de meter a faca naquele meu estômago inquieto.
Em menos de três minutos encontrou, em meio a capas de gordura e muito sangue, uma menina desassossegada, que logo disparou o choro a fim de mostrar sua insatisfação em relação ao mundo e ao ventre a que fora designada. Não parou mais de berrar até que Emerenciana tirou o peito pra fora e meteu-lhe na boquinha rosada, e a menina sugou e sugou até mirrar completamente a mama direita da mulher. Dormiu entre suas coxas grossas, embalada pelas súplicas de perdão do sitiante diante de uma cruz pendurada frente à porta de entrada da casinha modesta.
O sitiante suspendeu a fala novamente e deixou o olhar se perder nas frestas do chão de madeira enquanto aguardava pacientemente qualquer reação minha. Então, de súbito, perguntei como é que ele achava que eu não teria percebido qualquer coisa crescendo dentro de mim sem ao menos procurar entendimento. O homem olhou-me e sorriu ao dizer que eu tinha “corpo de sobra para esconder um bezerro”, referindo-se à minha obesidade. E arregalou os olhos mais uma vez, levou o dedo indicador à orelha e chamou minha atenção ao barulho que novamente se iniciava na sala.
Aquele choro me doía no peito, como se realmente fosse parte de mim. Enquanto ele não cessava, comecei a me questionar a possibilidade de algo assim, e se tamanho absurdo fosse realmente o que havia se sucedido. Tão logo a casa silenciou novamente, pedi que o sitiante me deixasse descansar um pouco para mais tarde continuarmos a conversa. Ele se levantou e saiu, mas antes que fechasse a porta eu pude ver a menina dependurada em um dos peitos de Emerenciana, e também o rosto de Emerenciana, vermelho e sereno.
Logo a noite chegou e eu fingia o sono quando a mulher penetrou o meu quarto. Trazia uma caneca de leite e um pedaço de pão, e os colocou na banqueta ao lado da cama. Por um talho de olhar pude ver, quando Emerenciana se debruçou sobre a cama para ajeitar as cobertas, o peito murcho que há pouco alimentava a criança que eu parira.
Algumas horas depois arrisquei levantar-me e, um tanto tonto, cambaleei o corpo ainda dolorido até a porta. Espiei por uma fresta, a fim de conferir o sono de todos, e finalmente adentrei a sala. O sitiante e a mulher dormiam em um cobertor estendido no chão, abraçados. Antes de abrir a porta de entrada da casa olhei dentro de um cesto de vime em cima da única cadeira. A menina balançava os braços e as pernas, e olhava para mim. Senti um repuxão na barriga, que sangrava pelo curativo.
Com a mão segurando as entranhas, fechei a porta depois de sair.

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