antonio gomez-to a better place
eu sou feliz na alegria não sentimental que se manifesta;
o que me fraccionava, partiu:
o que tende para um limite finito, desapareceu;
a mata espessa e o grande bosque florescem;
dobro-me conforme o número, género, grau, modo, tempo,
e pessoa que sou vossa.
o que me fraccionava, partiu:
o que tende para um limite finito, desapareceu;
a mata espessa e o grande bosque florescem;
dobro-me conforme o número, género, grau, modo, tempo,
e pessoa que sou vossa.
E
assino.
Maria Gabriela Llansol [1]
O Gesto Fala é um conto com
cinco partes, às quais chamei 'Cantos'.
Cada um
desses cantos tem fragmentos de textos da escritora a quem ele é dedicado, numa
intenção de intertextualidade: são os trechos entre aspas e em itálico. Podem
fazer parte do conto como um acréscimo à minha narrativa; podem estar ligados
diretamente a um personagem. Geralmente, à personagem principal: ora serão suas
leituras, ora seus escritos, ora seus pensamentos.
O primeiro
canto é dedicado a Maria Gabriela Llansol; o segundo, a Lou Andreas-Salomé; o
terceiro, a Simone de Beauvoir; o quarto, a Clarice Lispector e, o quinto,
a Cecília Meireles.
Sonia Regina
Canto
Primeiro [A Maria Gabriela LLansol]
O
barulho de vidro espatifado foi como um murro em seu peito. Segurou-se na
poltrona. As letras se embaralharam no papel, a leitura escapuliu do colo.
Branca
tinha horror a vidro partido, a estilhaços. Foi à cozinha. Nenhum copo ou prato
quebrados. Olhou pela janela... Nada, tudo na mais santa paz. Retomou os
papéis.
Não
tinha senão folhas com trechos de diferentes livros daquela autora por quem se
apaixonara em dezembro de 2007. Releu:
“Abel sentou-se no chão. Via Sara de perfil,
debruçada sobre o alguidar em que a brancura dos pratos purificava a água suja.
- Sara, tudo o que existe faz aumentar a luz.
- Como?
- Metes as mãos na água ela sobe no alguidar. Metes
nesta casa uma cama, um armário e a luz também tem de aumentar. Tem de ir para
algum sítio a luz que já não está no lugar da cama e do armário.
- Mas não é assim?
- Não. Pensei isto de manhã, enquanto guiava a
camioneta.
Sara sentou-se também no chão, em frente de Abel.
Os seus pés não tinham meias, nem sapatos.
As palavras "Sara, tudo o que existe faz
aumentar a luz", " Metes nesta casa uma cama, um armário e a luz
também tem de aumentar", eram o vidro que desunia os corpos de Sara e
Abel. [2]
“Foi
daqui o barulho”, cogitou. “Ué, eu quebrei um vidro...”. Já não era a primeira
vez que isso acontecia. Algo se manifestava quando lia ou via imagens que a
puxavam para a cena.
Desde
pequena o cinema a encantava. Deliciava-se com o aroma de terra, nos filmes de
aventura. Quando soube que não havia cheiros nos filmes, ficou impactada – mas
não deixava de senti-los, se a impressão era forte. “Imagens e escritas vivas
estabelecem contato direto e imediato com o espectador ou leitor. E também o
silêncio”, pensava.
Branca
admirava Maria Gabriela LLansol, ainda que nunca tivesse lido um livro inteiro.
Lia excertos que encontrava na web e aquela energia tocava-a em cada linha.
Principalmente nos ‘traços contínuos’, que não entendia bem – mas sentia. Eram
um silêncio que Branca percebia. Sobre eles LLansol escrevera:
"_____________________________ o irritante
traço contínuo.
É apenas uma dobra e um baraço. O texto dobra,
efeito de colagem. O texto suspende o sentido, à espera de dizer exacto. Há
frases que só completei anos depois; há frases que, no limiar dos mundos, não
devem ser escritas por inteiro; há frases cujo referente de sentido será sempre
obscuro. Se eu pretendesse escrever um texto sempre limpo - tiraria o traço.
Onde não soubesse, nada escreveria. Mas como iria saber que ali não soube, ou
nem sequer me pertencia saber? O texto é limpo, e por passajar. Onde o traço é
apagado, vê-se claramente o raspar da borracha. Deixar o traçado." [3]
Branca
Martins era engenheira, jovem executiva. Levava uma vida acadêmica bem sucedida
que lhe trazia muito movimento entre o escritório e os corredores da
universidade. Desaguavam sempre, nos papéis cheios de traços e números, as
palavras. Branca entendia-se com elas. Gostava de provocar [des]hábitos de
sentido, discordava que fossem afeitas a cumprir sinas. Lia, escrevia frases
soltas como “guardo ventos e tempestades; noites e penumbras eu transformo;
desenho sóis em cada esquina”. Subvertia significados. Foi num tempo desses que
haviam vindo os poemas. A prosa mesmo chegou a partir da leitura deste texto de
LLansol:
"O meu texto não avança por desenvolvimentos
temáticos, nem por enredo, mas segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor.
Há assim unidade, mesmo se aparentemente não há lógica, porque eu não sei
antecipadamente o que cada cena fulgor contém. O seu núcleo pode ser uma
imagem ou um pensamento, ou um sentimento intensamente afectivo, um
diálogo." [4]
Branca
foi procurar ‘cenas fulgor’ em suas frases. Encontrou algumas que saltavam,
enquanto lia. Descobrira os fios que sempre lá haviam estado, alinhavando
pré-textos. E escreveu o seu primeiro texto, com o pensamento em Maria Gabriela
Llansol.
Canto Segundo [A Lou Andreas-Salomé]
Tinha que
arrumar o quarto de empregada. A diarista havia vindo pra lhe ajudar. Manu
dormia e o tempo estava feio – nenhum chamado para a indolência, fora a vontade
de não ter vontade - de nada. “Acordei cedo pra isso, preciso agir.” Mas ficava
no sofá, tomando café... e aqueles malditos remédios. Odiava ter um estado
químico alterado no corpo. Algo faltava. Um bolo na garganta indicava angústia,
o tédio não prometia bons momentos. Estava farta dos maus e tentara despejar
tudo no papel. Mas as sensações estavam partidas e os destroços de palavras
arranharam seu ser - estático e impactado com os cacos. Levantou-se e foi
tratar das arrumações.
“O que significa perda se torna sinônimo de volta a si próprio” [5]
Branca tinha
uma filha querida, boa casa, diarista para fazer o serviço doméstico e um
cachorro que a esperava à porta - saltitante e terno. Por vezes refletia se a
presença de um companheiro a tornaria mais feliz. A filha era um encanto.
Amava-a profundamente, era o presente que a vida tinha lhe dado. Boa mãe, carinhosa
e atenta, não falava alto nunca. Acordar muito cedo passou a ser um prazer -
gostava de cuidar de Manuela. Jamais esqueceria aqueles momentos de comunhão
num tempo só delas.
“Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo
que está em nós e que queima como o fogo da vida!!!”
Conversavam
muito. A irmã de Branca chegou a assinalar que falava demais com a menina. Mas
ela acreditava que era válida qualquer conversa com a criança. Ainda que não
entendesse as palavras, sentiria o amor com que eram ditas e um dia aquilo
seria por ela ressignificado - havia aprendido com a psicanalista francesa
Françoise Doltoo.
"Não posso conformar a minha vida a modelos, nem jamais poderei
constituir um modelo para quem quer que seja; mas é totalmente certo que
dirigirei minha vida segundo o que sou, aconteça o que acontecer."
Branca
gostava de ler e arranjava tempo pra isso. Quando podia, percorria alguns sebos
nos arredores da Praça Tiradentes. Os livros e revistas usados convocavam
leitores especiais como ela, pessoas que desejavam passear pelas impressões de
antigos donos, escritas nas margens. Folheou a revista brasileira que comprara:
"Terra Especial", de Junho de 1999. A capa mostrava uma praia entre
uma rocha pontiaguda e uma cascata que caía na areia. Imagem de sonho. A
manchete "Paraísos Ecológicos Brasileiros" e a chamada
""mais de 20 roteiros para você viajar pelo Brasil" a haviam
atraído. Naquele dia abdicara da refeição e contentava-se com o sanduíche do
Bar das Freiras, na PUC. Pensou no homem que a vendera para a livraria. Um ser
esquisito. Franzino e muito moreno, puxava de uma perna. Já o vira antes, por
lá. Sempre de terno, cheirando a mofo – talvez do lugar onde guardava os livros
velhos e mapas que vendia.
“A vida
humana - ah!
A vida sobretudo - é poesia.
Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia
passo a passo - mas em sua intangível
plenitude ela vive e se nos traduz em poesia.
Longe, muito longe da antiga frase
‘Faz de tua vida uma obra de arte’;
Não somos nós nossa obra de arte?”
A vida sobretudo - é poesia.
Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia
passo a passo - mas em sua intangível
plenitude ela vive e se nos traduz em poesia.
Longe, muito longe da antiga frase
‘Faz de tua vida uma obra de arte’;
Não somos nós nossa obra de arte?”
Branca não
era brasileira, embora vivesse no Brasil desde pequena. Admirava esse país
misterioso, de gente cuja alegria era a segunda pele que recobria a fome e
pobreza. Um povo de garra, valente - como ela. "Talvez" - pensava -
"seja essa natureza, o sol sempre presente, o tempo quente, o que lhes dá
esse jeito alegre e comunicativo, ainda que sem motivos para contentamento”.
Mergulhava nas gravuras e textos e transportava-se, expressão
transfigurada.
- Olá! Seu
olhar deixou a revista.
Cumprimentou
o colega, convidou-o a sentar-se.
- Então,
menina doce? Como foi o carnaval?
- Fui doce,
Carlos, fui. Mas sei que a doçura mata.
“Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida,
aprenda... a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o
que acontecer.”
Canto Terceiro [A Simone
de Beauvoir]
Ele
interrogou-a com o olhar espantado e nada disse. O silêncio era o menos
desconfortável que podia lhe oferecer em tão pouco tempo – ambos tinham aulas a
dar. Tocou levemente a mão da amiga e sentiu uma pressão na sua. Ela entendera
o carinho, e agradecia; seu coração ouvira o pensamento do dele:
“envelhecer não é, necessariamente, renegar-se”.[6]
Carlos
levantou-se, alisou seus cabelos e deu-lhe um beijo, dizendo peremptoriamente:
- Te
encontro aqui, às 18h.
Branca deu
uma volta no bosque, antes de subir. Bendizia aquele campus desde que chegara
àquela universidade, como aluna. Ali as ideias se acalmavam e o coração
pensava.
Chegou menos
tensa à sala de aulas onde ministrava Fontes e Controle da Poluição Industrial,
no 7º período. Era professora do Departamento de Engenharia Ambiental durante
três horas por semana e, no tempo restante, estava no escritório do Rio de uma
empresa de Engenharia e Consultoria Ambiental, sediada em São Paulo.
Vinha à PUC
dois dias por semana: um para Estudo de Casos e o outro para a parte teórica. A
bibliografia do curso, totalmente em inglês, não lhe era um problema: dominava
a língua. Branca vinha se saindo muito bem. A turma lotada, além dos
comentários do coordenador do Departamento, o atestavam.
Carlos dava
aulas no 8º período e era seu colega na empresa de consultoria. Um bom amigo.
Mais velho e mais antigo nas funções, ajudava-a bastante. Acompanhara seus
momentos difíceis e extremamente complicados, desde antes da morte do marido.
Marcos tivera um aneurisma cerebral e havia se recusado a fazer a cirurgia –
tida como de alto risco.
Enquanto os
alunos trabalhavam no caso que havia proposto, Branca pensou:
“Que é que está acontecendo? É isso minha vida? Era só isso? Será que
isso vai continuar sempre?”
Deu uma
ligada para a diarista, dizendo que ia demorar. Uma combinação entre as duas
permitia que Branca se estendesse fora de casa, se necessário. Havia
necessidade: deixara o amigo preocupado. Na verdade, precisava de um colo. Mas
o que lhe diria? Branca era implacável consigo mesma, quando refletia:
“Tornei-me a meus próprios olhos um personagem de romance. Como toda
intriga romanesca exigia obstáculos e malogros, inventei-os.”
Alguns
amigos já sem paciência concordariam com seus pensamentos. Uma das poucas leais
a qualquer estado de Branca havia lhe dito:
- Pensa bem,
minha querida. Se, quando jovem, você imaginasse como seria na sua idade, o que
desejaria? Exatamente o que tem: uma filha maravilhosa, saudável, um casamento
que deu certo enquanto durou, amigos, um apartamento próprio, independência
financeira, um bom emprego, bom salário... O que há? Por que esse desânimo? Não
se afaste assim das pessoas e aproveite a vida!
Branca havia
se calado, sem ter o que dizer.
Ficava muito
sozinha. E pensava, ou escrevia. Inventara um caderno de anotações íntimas –
talvez um dia viesse a ser uma autobiografia: não um diário, pois não era todo
dia que escrevia - por brincadeira, mas dia-a-dia ele se configurava num instrumento
de organização. O fluxo de suas ideias era imenso e célere. Procurou-o, na
bolsa. Os alunos ainda trabalhavam no caso e ela entregou-se à escrita de um
novo capítulo, que chamou de Meus Amigos.
“ O que os assustava era o que havia em mim de mais obstinado: minha
recusa a uma existência medíocre, em que consentiam de um modo ou de outro, e
meus esforços desordenados para sair dela. Tentei encontrar um motivo: “Não sou
como os outros, mas resigno-me.” Não me resignava, porém. Separada de outrem,
não tinha mais ligação com o mundo: este passava a ser um espetáculo que não me
dizia respeito. Renunciara sucessivamente à glória, à felicidade e a servir;
agora não me interessava mais por viver.”
O tempo da
aula acabava, alguns alunos já traziam o relatório. Branca arrumou-se para sair
da sala, e desceu.
Carlos a
esperava como dissera, no bar das freiras. Recebeu-a sorrindo, o que a comoveu.
Sorriu, também.
- Então?
- Dezoito em
ponto! O que deu em você, Branquinha? – disse, rindo.
- Não sou
mais impontual, Carlos. Ando mudando... E querendo mudar. Pode continuar me
chamando assim, mas eu não gosto. Não me agrada a referência ao meu jeito suave
e doce - quase infantil.
- Mas...
mata? – Disse ele, se referindo ao término da conversa antes da aula. - Como,
mata?
- Aquilo foi
um pensamento alto, meu amigo.
- Conta.
- Não quero
mais ser doce e meiga. Marcos era doce...
Caiu num
pranto convulsivo. Carlos abraçou-a, puxando-a para longe dali. Àquela hora já
quase não havia ninguém do turno da tarde e o turno da noite começava às 19h.
- Minha
querida...
Foram até a
praia, conversaram muito. Branca havia se refeito e contado a Carlos de seus
medos. Sentia-se falha, e se envergonhava. Sempre fora forte e decidida, segura
de si. Nunca sua autoestima despencara como agora e tinha medo.
- Você ainda
está deprimida, Branca. Tem se tratado?
- Sim,
tenho.
Passearam um
pouco, de carro. O mar estava calmo, o ar quente, a música era suave. A
presença de Carlos e o clima sereno deixaram Branca tranquila.
“Em um coração bem equilibrado, a amizade ocupa um lugar honroso mas não
tem o brilho do misterioso amor, nem a dignidade sagrada das ternuras
familiares.”
Ao chegar à
casa não encontrou ninguém. Nenhum bilhete. Supôs que Manu e a diarista
tivessem descido com o cachorrinho. A noite estava mesmo quente...
Foi tomar um
bom banho, para jantar.
Canto Quarto [A Clarice Lispector]
Manuela
entrou em casa gritando:
- Mãe!
Maaanhê...
- Tou aqui,
Manu, no banheiro.
- Imagina!
- Ah, filha,
tudo que menos quero agora é imaginar. Conta pra mamãe?
Manuela fez
uma carinha de desapontamento, mas a animação era maior:
- Pingo!
Está namorando, e vai casar.
- O quê?
- É, mãe, já
combinamos tudo.
- ...
Branca
terminou de se arrumar, jantaram, com Manuela tagarelando:
- Saímos pra
passear e o Pingo fez amizade com uma cachorrinha da mesma raça que ele.
Ficaram brincando, se cheirando...
E continuou
falando pra mãe do acontecido - de como era linda a cadela Maia, dos filhotes
que podia ter com Pingo - até ir dormir, feliz e exausta.
Branca
estava também cansada, exaurida. Fora um dia cheio e nada fácil. Ainda que não
se sentisse em paz, conseguia se manter em pé e lúcida. A diarista veio se
despedir.
- D.Branca,
eu posso dormir aqui? Está tão tarde...
- Claro,
Lúcia. Pega roupa de cama na cômoda, pode levar um dos travesseiros da minha
cama. E come qualquer coisa, menina! Saco vazio não fica em pé.
- D.
Branca...
- O que é,
Lúcia?
- Eu queria
fazer um pedido. A Senhora podia tirar uma coisa no seu cartão de crédito?
- Amanhã,
Lúcia, amanhã falamos.
Branca tinha
uma relação peculiar com as empregadas. Era muito próxima, embora mantivesse
uma fronteira clara. Marcos dizia que não existia patroa assim e, nas conversas
com ele, Branca praticamente discursava. Ele a ouvia com atenção, sereno.
Aquela mulher o encantava. Ela discorria sobre como nunca tinha sido assaltada
numa cidade como o Rio de Janeiro, nem roubada, ou sido alvo de qualquer
ruindade. Ainda que não houvesse Deus ou entidades espirituais, acreditava
haver algo que a protegia. O Amor, talvez.
Antes de
dormir escreveu no seu caderno de anotações íntimas:
“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha
vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus
filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma,
com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para
tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo
que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço:
ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca ” [7]
*
O dia
amanheceu claro e muito úmido. O orvalho gotejava das plantas e a névoa se
sustentava pouco acima do mar, como um manto etéreo. Caminhar às 6h na beira da
praia fazia bem a Branca. Respirar aquele ar a renovava.
Branca não
se cansava de se espantar. Achava a natureza misteriosa, dadivosa - nunca se
repetindo. Fosse um verde novo numa flor que desabrochava ou uma pétala caída.
Não precisavam de interpretação aquelas cristalinas mensagens de vigor.
Caminhava
devagar, pisando na calçada como lhe ensinara o monge budista Thich Nhat Hanh:
em cada passo imprimindo no chão uma marca sua, como um selo imperial. Branca
contava as inspirações e expirações e praticava a meditação andando.
Apreciava
esses momentos sozinha, mas a sensação de solidão lhe tirava a serenidade. Logo
vinha a nostalgia e um aperto no peito. Sentia-se carregando o mundo e desejava
pedir licença e descer. Sentou-se em um quiosque, pediu uma água de coco e
escreveu, enquanto a tomava:
“Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em
sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa.
Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras
coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso
fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.”
Branca se
questionava demais. Desconfiava de si mesma e se exigia muito. Tinha uma
inconformação que a impulsionava e, entretanto, a incomodava: tornava fugazes
os pequenos prazeres. Adorava ser engenheira - tinha vocação -, mas sua paixão
era a literatura. O prazer com a escrita a acompanhava desde cedo. Conseguia
diluir ou estender emoções, com aquelas palavras que não relia: escrever lhe
bastava.
“O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que
seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.”
Fechou o
caderno, pagou a conta e voltou pra casa – quase em paz. Não tinha ideia da
surpresa que a esperava.
Canto Quinto [A
Cecília Meireles]
Talvez mais
que surpresa, espanto. Na sala estavam, além de Pingo, Manuela e Lúcia, uma cachorrinha
preta com lacinhos lilases e D. Virgínia. Dona Virgínia? Então era ela a dona
da cadela?
D. Virgínia
ainda tinha ares de império. Branca viu de imediato o olhar altivo que sempre
acompanhara sua fala direta e ríspida.
“Temos impérios vários, príncipes, imperatrizes, princesas (...). É o
nosso sonho de grandeza, a nossa compensação, a valorização que damos aos
nossos próprios méritos...” [8]
Foi difícil
cumprimentar a visitante. Não conseguiu esboçar um sorriso e estendeu a mão, o
braço recuando. Instantes intermináveis de um reencontro desagradável. Disse
meia dúzia de palavras e retirou-se. Conversaria com a filha e a diarista à
noitinha. Aliás, tinha uma resposta afirmativa ainda pendente e a conversa com
Lúcia não podia passar daquele dia. Cogitou:
“Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto
sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo
muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras
fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.” [9]
Separou uma
roupa e entrou no chuveiro, pensando em como conseguira se desvencilhar com
serenidade. O barulho da água atrapalhava seus pensamentos, as lembranças se
embaralhavam. Flashes de uma memória infantil se misturavam a recordações
adolescentes, há muito adormecidas.
As pernas
cansadas da caminhada pareciam pesar muitos quilos. O vapor tinha um ar de
névoa sem serra. O sabonete derretia nas mãos de Branca e o perfume a enjoava.
Enxaguou-se e deixou o banheiro, contente por ter reformado o apartamento.
Havia porta separando o corredor da sala, havia porta protegendo sua
intimidade.
Dona
Virgínia era mãe de uma amiga de infância. Branca vivia por lá, brincando. As
crianças frequentavam as casas uns dos outros – as mães trabalhavam e as
empregadas nada opunham. Tampouco tinham noção de que aquela permissão não
trazia só alegrias.
O ânimo
escapuliu e Branca recostou-se, enrolada no roupão. Molhavam o travesseiro, os
cabelos daquela mulher cujos sentimentos afloravam em meio às lembranças
insistentes.
À volta do
fogão a conversa era animada. Relegada e muito educada para ir se enfiando no
meio dos assuntos da amiga, da tia e da mãe, Branca permanecia parada na porta
da cozinha. D. Virginia viu-a e perguntou se queria comer mais, com um jeito
aborrecido e nada acolhedor. O empurrão daquele incômodo deixou-a constrangida.
Balbuciou qualquer coisa acerca de que tinha ido entregar o prato e afastou-se.
O canto perto do piano era um oásis, foi o solo firme onde se abrigou. Abraçou
o irmão e jurou para si mesma que nunca mais deixaria que a ausência da mãe os
deixasse desamparados. Naquele momento desabrochou em Branca uma força
estranha: a menina-mulher criava raízes.
“Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse
mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os
perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.” [10]
Tinham oito
anos, corriam pela casa, brincavam contentes. Felizes dias. Branca prendeu
Sofia na varanda e ambas empurraram a porta de vidro, uma de cada lado. Foi o
braço de Sofia que se rasgou, foi a alma de Branca que foi retalhada. As
reprimendas de D. Virgínia, desordenadas e em intensidade impensável, falavam
de culpa. Branca não voltou lá enquanto expiava o pecado de não ter sido ela a
enfiar o braço pela porta de vidro.
“estava sempre em guarda contra os adultos. (...) Tinham a força ao seu
dispor (representada por várias formas de agressão, da palmada ao quarto
escuro, passando por várias etapas muito variadas).” [11]
Amigas,
sempre, fizeram o vestibular juntas. Branca passou, Sofia não. ‘Como havia
passado, se não havia estudado tanto quanto a amiga?’ Ouviu do irmão de Sofia, ao
invés dos parabéns esperados.
O imenso ressentimento, tantas vezes declarado, atrapalhou a alegria de Branca com o sucesso. Resultado de uma crueldade difícil de acreditar. Entretanto,
O imenso ressentimento, tantas vezes declarado, atrapalhou a alegria de Branca com o sucesso. Resultado de uma crueldade difícil de acreditar. Entretanto,
“tudo é crivel. Principalmente o incrível. (...) A vida é que já é por
si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície.” [12]
Branca não
acumulou fracassos, todavia. É profissional competente e respeitada, amiga
querida, mulher amada. Até dos empregados recebe loas à generosidade.
Uma mulher
que até ser adulta evitou o sucesso em qualquer área – pois ao invés de
alegria poderia significar dor - vai mais leve para o trabalho, este dia. E nos
demais. Saboreia olhar tudo e todos, identificada com o Rio de Janeiro:
“A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades.” [13]
* * *
[2] Maria Gabriela Llansol. excerto de O
Chão das Três Árvores. In: Os Pregos na Erva. Lisboa: Rolim, 1987
[5] Os textos em itálico do Canto Segundo são de Lou Andreas-Salomé,
citada por Luzilá Gonçalves Ferreira em Humana, demasiado humana. Rio de
janeiro: Rocco, 2000.
[6] Os textos em itálico do Canto Terceiro são de Simone de
Beauvoir. Memórias de uma moça bem comportada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983
[7] Os textos em itálico do Canto Quarto são de Clarice Lispector,
em Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.
Os textos em itálico do Canto
Quinto são de Cecília Meireles. Pesquisa na página do Projeto Releituras http://www.releituras.com:
[10] ___________. Primavera. In: Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998
[12] ___________. História de uma letra. In: Cecília Meireles — Obra
em prosa — Volume 1. Rio de Rio de janeiro: Editora
Nova Fronteira, 1998
3 comentários
O que dizer de um texto como esse? Simplesmente aplaudir... de pé!!! Abraços
Sonia,
Já havia lido esse seu texto: Onde foi mesmo, no Portal Literal?
Genial!!!
Um Beijo, Jorge
Regina e Jorge, super obrigada! O feedback de vocês me importa e incentiva.
Sim, Jorge, vc já o leu e comentou - aqui mesmo. Mas revisei o texto e a formatação, por isso anulei aquela publicação e republiquei agora.
Bjs pra ambos
da Sonia
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