segunda-feira, 14 de maio de 2012

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O Gesto Fala - Sonia Regina

antonio gomez-to a better place


eu sou feliz na alegria não sentimental que se manifesta;
o que me fraccionava, partiu:
o que tende para um limite finito, desapareceu;
a mata espessa e o grande bosque florescem;
dobro-me conforme o número, género, grau, modo, tempo,
e pessoa que sou vossa.
                  E assino.                   
Maria Gabriela Llansol [1]

O Gesto Fala é um conto com cinco partes, às quais chamei 'Cantos'.
Cada um desses cantos tem fragmentos de textos da escritora a quem ele é dedicado, numa intenção de intertextualidade: são os trechos entre aspas e em itálico. Podem fazer parte do conto como um acréscimo à minha narrativa; podem estar ligados diretamente a um personagem. Geralmente, à personagem principal: ora serão suas leituras, ora seus escritos, ora seus pensamentos.
O primeiro canto é dedicado a Maria Gabriela Llansol; o segundo, a Lou Andreas-Salomé; o terceiro, a Simone de Beauvoir; o quarto, a Clarice Lispector e, o quinto,  a Cecília Meireles.

Sonia Regina



Canto Primeiro  [A Maria Gabriela LLansol]

O barulho de vidro espatifado foi como um murro em seu peito. Segurou-se na poltrona. As letras se embaralharam no papel, a leitura escapuliu do colo.
Branca tinha horror a vidro partido, a estilhaços. Foi à cozinha. Nenhum copo ou prato quebrados. Olhou pela janela... Nada, tudo na mais santa paz. Retomou os papéis.
Não tinha senão folhas com trechos de diferentes livros daquela autora por quem se apaixonara em dezembro de 2007. Releu:

“Abel sentou-se no chão. Via Sara de perfil, debruçada sobre o alguidar em que a brancura dos pratos purificava a água suja.
- Sara, tudo o que existe faz aumentar a luz.
- Como?
- Metes as mãos na água ela sobe no alguidar. Metes nesta casa uma cama, um armário e a luz também tem de aumentar. Tem de ir para algum sítio a luz que já não está no lugar da cama e do armário.
- Mas não é assim?
- Não. Pensei isto de manhã, enquanto guiava a camioneta.
Sara sentou-se também no chão, em frente de Abel. Os seus pés não tinham meias, nem sapatos.
As palavras "Sara, tudo o que existe faz aumentar a luz", " Metes nesta casa uma cama, um armário e a luz também tem de aumentar", eram o vidro que desunia os corpos de Sara e Abel. [2]

“Foi daqui o barulho”, cogitou. “Ué, eu quebrei um vidro...”. Já não era a primeira vez que isso acontecia. Algo se manifestava quando lia ou via imagens que a puxavam para a cena.
Desde pequena o cinema a encantava. Deliciava-se com o aroma de terra, nos filmes de aventura. Quando soube que não havia cheiros nos filmes, ficou impactada – mas não deixava de senti-los, se a impressão era forte. “Imagens e escritas vivas estabelecem contato direto e imediato com o espectador ou leitor. E também o silêncio”, pensava.
Branca admirava Maria Gabriela LLansol, ainda que nunca tivesse lido um livro inteiro. Lia excertos que encontrava na web e aquela energia tocava-a em cada linha. Principalmente nos ‘traços contínuos’, que não entendia bem – mas sentia. Eram um silêncio que Branca percebia. Sobre eles LLansol escrevera:  

"_____________________________ o irritante traço contínuo.
É apenas uma dobra e um baraço. O texto dobra, efeito de colagem. O texto suspende o sentido, à espera de dizer exacto. Há frases que só completei anos depois; há frases que, no limiar dos mundos, não devem ser escritas por inteiro; há frases cujo referente de sentido será sempre obscuro. Se eu pretendesse escrever um texto sempre limpo - tiraria o traço. Onde não soubesse, nada escreveria. Mas como iria saber que ali não soube, ou nem sequer me pertencia saber? O texto é limpo, e por passajar. Onde o traço é apagado, vê-se claramente o raspar da borracha. Deixar o traçado." [3]

Branca Martins era engenheira, jovem executiva. Levava uma vida acadêmica bem sucedida que lhe trazia muito movimento entre o escritório e os corredores da universidade. Desaguavam sempre, nos papéis cheios de traços e números, as palavras. Branca entendia-se com elas. Gostava de provocar [des]hábitos de sentido, discordava que fossem afeitas a cumprir sinas. Lia, escrevia frases soltas como “guardo ventos e tempestades; noites e penumbras eu transformo; desenho sóis em cada esquina”. Subvertia significados. Foi num tempo desses que haviam vindo os poemas. A prosa mesmo chegou a partir da leitura deste texto de LLansol:

"O meu texto não avança por desenvolvimentos temáticos, nem por enredo, mas segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor. Há assim unidade, mesmo se aparentemente não há lógica, porque eu não sei antecipadamente o que cada cena fulgor contém.  O seu núcleo pode ser uma imagem ou um pensamento, ou um sentimento intensamente afectivo, um diálogo." [4]

Branca foi procurar ‘cenas fulgor’ em suas frases. Encontrou algumas que saltavam, enquanto lia. Descobrira os fios que sempre lá haviam estado, alinhavando pré-textos. E escreveu o seu primeiro texto, com o pensamento em Maria Gabriela Llansol.



Canto Segundo  [A Lou Andreas-Salomé]

Tinha que arrumar o quarto de empregada. A diarista havia vindo pra lhe ajudar. Manu dormia e o tempo estava feio – nenhum chamado para a indolência, fora a vontade de não ter vontade - de nada. “Acordei cedo pra isso, preciso agir.” Mas ficava no sofá, tomando café... e aqueles malditos remédios. Odiava ter um estado químico alterado no corpo. Algo faltava. Um bolo na garganta indicava angústia, o tédio não prometia bons momentos. Estava farta dos maus e tentara despejar tudo no papel. Mas as sensações estavam partidas e os destroços de palavras arranharam seu ser - estático e impactado com os cacos. Levantou-se e foi tratar das arrumações.

“O que significa perda se torna sinônimo de volta a si próprio” [5]

Branca tinha uma filha querida, boa casa, diarista para fazer o serviço doméstico e um cachorro que a esperava à porta - saltitante e terno. Por vezes refletia se a presença de um companheiro a tornaria mais feliz. A filha era um encanto. Amava-a profundamente, era o presente que a vida tinha lhe dado. Boa mãe, carinhosa e atenta, não falava alto nunca. Acordar muito cedo passou a ser um prazer - gostava de cuidar de Manuela. Jamais esqueceria aqueles momentos de comunhão num tempo só delas.

“Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!!”

Conversavam muito. A irmã de Branca chegou a assinalar que falava demais com a menina. Mas ela acreditava que era válida qualquer conversa com a criança. Ainda que não entendesse as palavras, sentiria o amor com que eram ditas e um dia aquilo seria por ela ressignificado - havia aprendido com a psicanalista francesa Françoise Doltoo.

"Não posso conformar a minha vida a modelos, nem jamais poderei constituir um modelo para quem quer que seja; mas é totalmente certo que dirigirei minha vida segundo o que sou, aconteça o que acontecer."

Branca gostava de ler e arranjava tempo pra isso. Quando podia, percorria alguns sebos nos arredores da Praça Tiradentes. Os livros e revistas usados convocavam leitores especiais como ela, pessoas que desejavam passear pelas impressões de antigos donos, escritas nas margens. Folheou a revista brasileira que comprara: "Terra Especial", de Junho de 1999. A capa mostrava uma praia entre uma rocha pontiaguda e uma cascata que caía na areia. Imagem de sonho. A manchete "Paraísos Ecológicos Brasileiros" e a chamada ""mais de 20 roteiros para você viajar pelo Brasil" a haviam atraído. Naquele dia abdicara da refeição e contentava-se com o sanduíche do Bar das Freiras, na PUC. Pensou no homem que a vendera para a livraria. Um ser esquisito. Franzino e muito moreno, puxava de uma perna. Já o vira antes, por lá. Sempre de terno, cheirando a mofo – talvez do lugar onde guardava os livros velhos e mapas que vendia.

“A vida humana - ah!
A vida sobretudo - é poesia.
Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia
passo a passo - mas em sua intangível
plenitude ela vive e se nos traduz em poesia.
Longe, muito longe da antiga frase
‘Faz de tua vida uma obra de arte’;
Não somos nós nossa obra de arte?”

Branca não era brasileira, embora vivesse no Brasil desde pequena. Admirava esse país misterioso, de gente cuja alegria era a segunda pele que recobria a fome e pobreza. Um povo de garra, valente - como ela. "Talvez" - pensava - "seja essa natureza, o sol sempre presente, o tempo quente, o que lhes dá esse jeito alegre e comunicativo, ainda que sem motivos para contentamento”. Mergulhava nas gravuras e textos e transportava-se, expressão transfigurada. 
- Olá! Seu olhar deixou a revista.
Cumprimentou o colega, convidou-o a sentar-se.
- Então, menina doce? Como foi o carnaval?
- Fui doce, Carlos, fui. Mas sei que a doçura mata.

“Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.”



Canto Terceiro [A Simone de Beauvoir]

Ele interrogou-a com o olhar espantado e nada disse. O silêncio era o menos desconfortável que podia lhe oferecer em tão pouco tempo – ambos tinham aulas a dar. Tocou levemente a mão da amiga e sentiu uma pressão na sua. Ela entendera o carinho, e agradecia; seu coração ouvira o pensamento do dele:

“envelhecer não é, necessariamente, renegar-se”.[6]

Carlos levantou-se, alisou seus cabelos e deu-lhe um beijo, dizendo peremptoriamente:
- Te encontro aqui, às 18h.
Branca deu uma volta no bosque, antes de subir. Bendizia aquele campus desde que chegara àquela universidade, como aluna. Ali as ideias se acalmavam e o coração pensava.
Chegou menos tensa à sala de aulas onde ministrava Fontes e Controle da Poluição Industrial, no 7º período. Era professora do Departamento de Engenharia Ambiental durante três horas por semana e, no tempo restante, estava no escritório do Rio de uma empresa de Engenharia e Consultoria Ambiental, sediada em São Paulo.
Vinha à PUC dois dias por semana: um para Estudo de Casos e o outro para a parte teórica. A bibliografia do curso, totalmente em inglês, não lhe era um problema: dominava a língua. Branca vinha se saindo muito bem. A turma lotada, além dos comentários do coordenador do Departamento, o atestavam.
Carlos dava aulas no 8º período e era seu colega na empresa de consultoria. Um bom amigo. Mais velho e mais antigo nas funções, ajudava-a bastante. Acompanhara seus momentos difíceis e extremamente complicados, desde antes da morte do marido. Marcos tivera um aneurisma cerebral e havia se recusado a fazer a cirurgia – tida como de alto risco.
Enquanto os alunos trabalhavam no caso que havia proposto, Branca pensou:

“Que é que está acontecendo? É isso minha vida? Era só isso? Será que isso vai continuar sempre?”

Deu uma ligada para a diarista, dizendo que ia demorar. Uma combinação entre as duas permitia que Branca se estendesse fora de casa, se necessário. Havia necessidade: deixara o amigo preocupado. Na verdade, precisava de um colo. Mas o que lhe diria? Branca era implacável consigo mesma, quando refletia:

“Tornei-me a meus próprios olhos um personagem de romance. Como toda intriga romanesca exigia obstáculos e malogros, inventei-os.”

Alguns amigos já sem paciência concordariam com seus pensamentos. Uma das poucas leais a qualquer estado de Branca havia lhe dito:
- Pensa bem, minha querida. Se, quando jovem, você imaginasse como seria na sua idade, o que desejaria? Exatamente o que tem: uma filha maravilhosa, saudável, um casamento que deu certo enquanto durou, amigos, um apartamento próprio, independência financeira, um bom emprego, bom salário... O que há? Por que esse desânimo? Não se afaste assim das pessoas e aproveite a vida!
Branca havia se calado, sem ter o que dizer.
Ficava muito sozinha. E pensava, ou escrevia. Inventara um caderno de anotações íntimas – talvez um dia viesse a ser uma autobiografia: não um diário, pois não era todo dia que escrevia - por brincadeira, mas dia-a-dia ele se configurava num instrumento de organização. O fluxo de suas ideias era imenso e célere. Procurou-o, na bolsa. Os alunos ainda trabalhavam no caso e ela entregou-se à escrita de um novo capítulo, que chamou de Meus Amigos.

“ O que os assustava era o que havia em mim de mais obstinado: minha recusa a uma existência medíocre, em que consentiam de um modo ou de outro, e meus esforços desordenados para sair dela. Tentei encontrar um motivo: “Não sou como os outros, mas resigno-me.” Não me resignava, porém. Separada de outrem, não tinha mais ligação com o mundo: este passava a ser um espetáculo que não me dizia respeito. Renunciara sucessivamente à glória, à felicidade e a servir; agora não me interessava mais por viver.”

O tempo da aula acabava, alguns alunos já traziam o relatório. Branca arrumou-se para sair da sala, e desceu.
Carlos a esperava como dissera, no bar das freiras. Recebeu-a sorrindo, o que a comoveu. Sorriu, também.
- Então?
- Dezoito em ponto! O que deu em você, Branquinha? – disse, rindo.
- Não sou mais impontual, Carlos. Ando mudando... E querendo mudar. Pode continuar me chamando assim, mas eu não gosto. Não me agrada a referência ao meu jeito suave e doce - quase infantil.
- Mas... mata? – Disse ele, se referindo ao término da conversa antes da aula. - Como, mata?
- Aquilo foi um pensamento alto, meu amigo.
- Conta.
- Não quero mais ser doce e meiga. Marcos era doce...
Caiu num pranto convulsivo. Carlos abraçou-a, puxando-a para longe dali. Àquela hora já quase não havia ninguém do turno da tarde e o turno da noite começava às 19h.
- Minha querida...
Foram até a praia, conversaram muito. Branca havia se refeito e contado a Carlos de seus medos. Sentia-se falha, e se envergonhava. Sempre fora forte e decidida, segura de si. Nunca sua autoestima despencara como agora e tinha medo.
- Você ainda está deprimida, Branca. Tem se tratado?
- Sim, tenho.
Passearam um pouco, de carro. O mar estava calmo, o ar quente, a música era suave. A presença de Carlos e o clima sereno deixaram Branca tranquila.  

“Em um coração bem equilibrado, a amizade ocupa um lugar honroso mas não tem o brilho do misterioso amor, nem a dignidade sagrada das ternuras familiares.”

Ao chegar à casa não encontrou ninguém. Nenhum bilhete. Supôs que Manu e a diarista tivessem descido com o cachorrinho. A noite estava mesmo quente...
Foi tomar um bom banho, para jantar.



Canto Quarto [A Clarice Lispector]

Manuela entrou em casa gritando:
- Mãe! Maaanhê...
- Tou aqui, Manu, no banheiro.
- Imagina!
- Ah, filha, tudo que menos quero agora é imaginar. Conta pra mamãe?
Manuela fez uma carinha de desapontamento, mas a animação era maior:
- Pingo! Está namorando, e vai casar.
- O quê?
- É, mãe, já combinamos tudo.
- ...
Branca terminou de se arrumar, jantaram, com Manuela tagarelando:
- Saímos pra passear e o Pingo fez amizade com uma cachorrinha da mesma raça que ele. Ficaram brincando, se cheirando... 
E continuou falando pra mãe do acontecido - de como era linda a cadela Maia, dos filhotes que podia ter com Pingo - até ir dormir, feliz e exausta.
Branca estava também cansada, exaurida. Fora um dia cheio e nada fácil. Ainda que não se sentisse em paz, conseguia se manter em pé e lúcida. A diarista veio se despedir.
- D.Branca, eu posso dormir aqui? Está tão tarde...
- Claro, Lúcia. Pega roupa de cama na cômoda, pode levar um dos travesseiros da minha cama. E come qualquer coisa, menina! Saco vazio não fica em pé.
- D. Branca...
- O que é, Lúcia?
- Eu queria fazer um pedido. A Senhora podia tirar uma coisa no seu cartão de crédito?
- Amanhã, Lúcia, amanhã falamos.
Branca tinha uma relação peculiar com as empregadas. Era muito próxima, embora mantivesse uma fronteira clara. Marcos dizia que não existia patroa assim e, nas conversas com ele, Branca praticamente discursava. Ele a ouvia com atenção, sereno. Aquela mulher o encantava. Ela discorria sobre como nunca tinha sido assaltada numa cidade como o Rio de Janeiro, nem roubada, ou sido alvo de qualquer ruindade. Ainda que não houvesse Deus ou entidades espirituais, acreditava haver algo que a protegia. O Amor, talvez.
Antes de dormir escreveu no seu caderno de anotações íntimas:

“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca ” [7]

*

O dia amanheceu claro e muito úmido. O orvalho gotejava das plantas e a névoa se sustentava pouco acima do mar, como um manto etéreo. Caminhar às 6h na beira da praia fazia bem a Branca. Respirar aquele ar a renovava.
Branca não se cansava de se espantar. Achava a natureza misteriosa, dadivosa - nunca se repetindo. Fosse um verde novo numa flor que desabrochava ou uma pétala caída. Não precisavam de interpretação aquelas cristalinas mensagens de vigor.
Caminhava devagar, pisando na calçada como lhe ensinara o monge budista Thich Nhat Hanh: em cada passo imprimindo no chão uma marca sua, como um selo imperial. Branca contava as inspirações e expirações e praticava a meditação andando.
Apreciava esses momentos sozinha, mas a sensação de solidão lhe tirava a serenidade. Logo vinha a nostalgia e um aperto no peito. Sentia-se carregando o mundo e desejava pedir licença e descer. Sentou-se em um quiosque, pediu uma água de coco e escreveu, enquanto a tomava:

“Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.”

Branca se questionava demais. Desconfiava de si mesma e se exigia muito. Tinha uma inconformação que a impulsionava e, entretanto, a incomodava: tornava fugazes os pequenos prazeres. Adorava ser engenheira - tinha vocação -, mas sua paixão era a literatura. O prazer com a escrita a acompanhava desde cedo. Conseguia diluir ou estender emoções, com aquelas palavras que não relia: escrever lhe bastava.

“O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.”

Fechou o caderno, pagou a conta e voltou pra casa – quase em paz. Não tinha ideia da surpresa que a esperava.



Canto Quinto [A Cecília Meireles]

Talvez mais que surpresa, espanto. Na sala estavam, além de Pingo, Manuela e Lúcia, uma cachorrinha preta com lacinhos lilases e D. Virgínia. Dona Virgínia? Então era ela a dona da cadela?
D. Virgínia ainda tinha ares de império. Branca viu de imediato o olhar altivo que sempre acompanhara sua fala direta e ríspida.

“Temos impérios vários, príncipes, imperatrizes, princesas (...). É o nosso sonho de grandeza, a nossa compensação, a valorização que damos aos nossos próprios méritos...” [8]

Foi difícil cumprimentar a visitante. Não conseguiu esboçar um sorriso e estendeu a mão, o braço recuando. Instantes intermináveis de um reencontro desagradável. Disse meia dúzia de palavras e retirou-se. Conversaria com a filha e a diarista à noitinha. Aliás, tinha uma resposta afirmativa ainda pendente e a conversa com Lúcia não podia passar daquele dia. Cogitou:

“Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.” [9]

Separou uma roupa e entrou no chuveiro, pensando em como conseguira se desvencilhar com serenidade. O barulho da água atrapalhava seus pensamentos, as lembranças se embaralhavam. Flashes de uma memória infantil se misturavam a recordações adolescentes, há muito adormecidas.
As pernas cansadas da caminhada pareciam pesar muitos quilos. O vapor tinha um ar de névoa sem serra. O sabonete derretia nas mãos de Branca e o perfume a enjoava. Enxaguou-se e deixou o banheiro, contente por ter reformado o apartamento. Havia porta separando o corredor da sala, havia porta protegendo sua intimidade.
Dona Virgínia era mãe de uma amiga de infância. Branca vivia por lá, brincando. As crianças frequentavam as casas uns dos outros – as mães trabalhavam e as empregadas nada opunham. Tampouco tinham noção de que aquela permissão não trazia só alegrias.
O ânimo escapuliu e Branca recostou-se, enrolada no roupão. Molhavam o travesseiro, os cabelos daquela mulher cujos sentimentos afloravam em meio às lembranças insistentes.
À volta do fogão a conversa era animada. Relegada e muito educada para ir se enfiando no meio dos assuntos da amiga, da tia e da mãe, Branca permanecia parada na porta da cozinha. D. Virginia viu-a e perguntou se queria comer mais, com um jeito aborrecido e nada acolhedor. O empurrão daquele incômodo deixou-a constrangida. Balbuciou qualquer coisa acerca de que tinha ido entregar o prato e afastou-se. O canto perto do piano era um oásis, foi o solo firme onde se abrigou. Abraçou o irmão e jurou para si mesma que nunca mais deixaria que a ausência da mãe os deixasse desamparados. Naquele momento desabrochou em Branca uma força estranha: a menina-mulher criava raízes.

“Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.” [10]

Tinham oito anos, corriam pela casa, brincavam contentes. Felizes dias. Branca prendeu Sofia na varanda e ambas empurraram a porta de vidro, uma de cada lado. Foi o braço de Sofia que se rasgou, foi a alma de Branca que foi retalhada. As reprimendas de D. Virgínia, desordenadas e em intensidade impensável, falavam de culpa. Branca não voltou lá enquanto expiava o pecado de não ter sido ela a enfiar o braço pela porta de vidro.

“estava sempre em guarda contra os adultos. (...) Tinham a força ao seu dispor (representada por várias formas de agressão, da palmada ao quarto escuro, passando por várias etapas muito variadas).” [11]

Amigas, sempre, fizeram o vestibular juntas. Branca passou, Sofia não. ‘Como havia passado, se não havia estudado tanto quanto a amiga?’ Ouviu do irmão de Sofia, ao invés dos parabéns esperados. 

O imenso ressentimento, tantas vezes declarado, atrapalhou a alegria de Branca com o sucesso. Resultado de uma crueldade difícil de acreditar. Entretanto,

“tudo é crivel. Principalmente o incrível. (...) A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície.” [12]

Branca não acumulou fracassos, todavia. É profissional competente e respeitada, amiga querida, mulher amada. Até dos empregados recebe loas à generosidade.
Uma mulher que até ser adulta evitou o sucesso em  qualquer área – pois ao invés de alegria poderia significar dor - vai mais leve para o trabalho, este dia. E nos demais. Saboreia olhar tudo e todos, identificada com o Rio de Janeiro:

“A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades.” [13]

* * *


[1] Maria Gabriela Llansol . O Livro das Comunidades. Porto:Afrontamento, p. 123, 1977
[2] Maria Gabriela Llansol. excerto de O Chão das Três Árvores. In: Os Pregos na Erva. Lisboa: Rolim, 1987
[3] Llansol.  Inquérito às Quatro Confidências. Lisboa: Relógio d’Água, 1996
[4] Maria Gabriela Llansol. Um falcão no punho.  Lisboa: Rolim, 1985
[5] Os textos em itálico do Canto Segundo são de Lou Andreas-Salomé, citada por Luzilá Gonçalves Ferreira em Humana, demasiado humana. Rio de janeiro: Rocco, 2000.
[6] Os textos em itálico do Canto Terceiro são de Simone de Beauvoir. Memórias de uma moça bem comportada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983
[7] Os textos em itálico do Canto Quarto são de Clarice Lispector, em Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.
Os textos em itálico do Canto Quinto são de Cecília Meireles. Pesquisa na página do Projeto Releituras http://www.releituras.com:
[8] Cecília Meireles. Depois do Carnaval. In: Quatro Vozes. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998
[9] ____________. O Fim do Mundo. In: Quatro Vozes. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998
[10] ___________. Primavera. In: Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998
[11] ___________. Edmundo, o Céptico. In: Quadrante 2. Rio de janeiro: Editora do Autor, 1962
[12] ___________. História de uma letra. In: Cecília Meireles — Obra em prosa — Volume 1. Rio de Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998
[13] ___________. Compras de Natal. In: Quatro Vozes. Rio de janeiro: Editora Record, 1998

3 comentários

regina ragazzi

O que dizer de um texto como esse? Simplesmente aplaudir... de pé!!! Abraços

Jorge Xerxes

Sonia,

Já havia lido esse seu texto: Onde foi mesmo, no Portal Literal?

Genial!!!

Um Beijo, Jorge

Anônimo

Regina e Jorge, super obrigada! O feedback de vocês me importa e incentiva.

Sim, Jorge, vc já o leu e comentou - aqui mesmo. Mas revisei o texto e a formatação, por isso anulei aquela publicação e republiquei agora.

Bjs pra ambos
da Sonia