Ele
estava refestelado ao sol da manhã, para fugir da dor implacável, mas sua alma
permanecia fria como uma lápide; um espírito contrito. Fechou o livro. E
dirigiu a mim aquelas palavras.
O
ser humano, dito racional, é a causa dessa minha dor. Esse anseio besta pelo
infinito. É só quando fito o céu noturno, e posso observar as estrelas em sua
permanência de bilhões de anos, que posso apreender isso a que denominam
eternidade. Todo resto é parte dessa farsa do efêmero, a grande farsa de nossa
civilização. Uma ampla gama de disciplinas lógicas desenvolvidas a partir de um
erro em sua essência. Não é preciso grande aprofundamento nos fundamentos da
economia para aperceber-se que a crença na acumulação de riquezas encontra a
sua restrição nos recursos dessa nossa esfera celeste. Ainda assim insistimos
em revesti-la de fina camada de concreto e lixo. Assim como não preciso ser um
especialista em biologia para identificar a espécie que é a verdadeira praga
desse planeta. Estamos a desestabilizá-lo há milênios e as medidas de contenção
são claramente desastrosas: criar o gado para o consumo, as grandes plantações
de cereais substituindo áreas imensas de vegetação nativa. Substituindo e
transformando uma grande diversidade de espécies por sete bilhões de criaturas
orientadas para o consumo desenfreado, valores distorcidos e a autodestruição.
Levantou
da cadeira, deixou o livro sobre ela, fitou o infinito do céu azul. Se por um
lado o sol aquecia o seu corpo, soprava concomitante a brisa gelada daquela
manhã de outono. Então ele fitou fundo os meus olhos e prosseguiu.
É
coisa que não vem de hoje: a ideia do racional que é transmitida através das
gerações. Ainda assim, a história descreve em detalhes os ciclos sucessivos de
dominação e da exploração do humano pelo semelhante. Uma luta desenfreada pelo
poder, a usura desmedida, a arrogância, a presunção e o enxergar não muito além
do próprio umbigo. O ser humano a espalhar um amplo espectro da dor e do
sofrimento permeado por ideais de esperança numa paz que nunca chega. Não, o
ser humano não é – nem nunca foi –, em última instância, racional; e o pior é
essa sua pretensa elevação, atribuída à quimera da racionalidade.
Dito
isso, ele tomou a enxada que estava encostada num dos pilares da edícula e
pôs-se a cavar. Tchop, tchop, tchop...
O
ser humano verdadeiramente humano e consciente de si deveria cavar um buraco,
enterrar-se e aguardar pela morte enquanto reza para que os seus nutrientes
sejam distribuídos em condições equânimes aos vermes que habitam as
circunvizinhanças de seu jardim. Ele sabe que toda a criança chora ao nascer o
primeiro dia de sua morte, toda uma vida de dores e desencantos pela frente.
Então, porque aguardar pelo corpo senil, cadavérico, pela pele enrugada, um
punhado de ossos carcomidos e desprovidos de musculatura sadia para doar-se a
terra? Doar-se-ia já!
Há,
há, há! Ouvindo-me falar assim você deve imaginar que sou algum tipo insano de
altruísta, de idealista. Qual o que, meu pai ensinou-me muito bem: eu sou hu-ma-no!
Essa praga da pior espécie. Sou arrogante, egoísta ao extremo. Eu sei, para que
EU possa prosperar você deve perecer.
Ele
tomou-me em suas mãos com zelo e disse: Adeus Brás Cubas! Jogou-me ao fundo da
cova rasa. Ainda pude ouvir o murmurinho do trabalho com a enxada a cobrir o
meu corpo. Tentei gritar, blasfemei todas as gerações pregressas de insanos
como ele, sem efeito. Fui enterrado vivo.
Ao
longe, abafado pela terra ainda pude ouvir: Que lindo cemitério de livros eu tenho
em meu jardim!
Mas
sou eu que habito o chão desse cemitério a céu aberto de humanos – ainda tive
tempo de refletir.
2 comentários
Jorge, excelente.Esse" mal estar da civilização" nem o emplastro do Brás Cubas pode minorar . Abraço,André.
Salve, Jorge! Maravilha de texto.O Universo Machadiano nos inspira sempre.
Abraços!
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