quinta-feira, 7 de junho de 2012

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CONTAÇÃO: "Pedaço" - por M.Mei






PEDAÇO


Um filho que morre é um tanto da gente que se desfaz, 
uma saudade sem reencontro, uma dor sem cura...



Lidia abriu os olhos e a sentiu percorrer seu corpo com toda a crueldade de que era dotada. A dor, como uma cobra a chicotear o couro duro, subia suas pernas e terminava por destroçar-lhe o ventre, constante, interminável. Tentou reconhecer o lugar: a cama de lençóis brancos, o quarto enfeitado de gerânios e rosas amarelas, o feixe de luz que entrava por uma persiana quase fechada. “Um hospital” – pensou assim que seus olhos encontraram o fino tubo que alimentava seu braço com o líquido transparente.

“Ah, minha querida, graças a Deus!” – a voz masculina erguia um corpo amassado de uma cadeira onde o sol não iluminava. “Nossa, Carlos, que susto! Não consegui ver você aí nesse canto. Por que estou neste hospital? O que aconteceu?” – Lidia tentou se levantar, mas a dor cortou todo seu corpo a ponto de jogar-lhe novamente sobre o travesseiro. “Não, Lidia, não se levante, não deve fazer qualquer esforço” – tomou um copo de água nas mãos, inseriu o canudo vermelho que estava ao lado da jarra e ofereceu à mulher. “Tome, beba um pouco de água, sua boca deve estar seca, está dormindo há cinco horas já. Não se levante, vire a cabeça e beba com o canudo”.

Lidia correspondeu ao marido enquanto constatava o carinho com que ele amparava seu pescoço com uma das mãos e segurava o copo com a outra. Tudo para que ela tomasse um gole de água, tudo para que ela o amasse novamente. Mas Lidia pode reviver por alguns segundos apenas a sensação dos primeiros abraços, quando faziam amor no Morro São Sebastião, na madrugada de Ouro Preto, para depois assistirem o sol a banhar-lhes de aplausos alaranjados. “Agora deite, Lidia. Vou chamar o médico já que você acordou”. Os abraços. Apenas por alguns segundos. Pois seu coração não já não pertencia a Carlos, mas a Frederico.

“Frederico...” – murmurou Lidia. O sibilo da dor trazia os flashes das horas anteriores. As escadas e o silêncio de Frederico de pé atrás da porta que Lidia batera ao sair. O silêncio e a portaria abandonada do prédio na Rua Jaguaribe. A rua e o silêncio rompido pelos brados de uma cidade a pulsar. A rua e o carro. O carro. O carro... “Meu Deus...” – suspirou ao pousar a mão sobre o ventre. Carlos entrou.

“Carlos, o que...” – foi interrompida pela voz firme que seguia o marido. “Olá, Lidia, como vai? Meu nome é Gilberto, sou ginecologista e obstetra, e você está sob meus cuidados” – o médico era o doutor Gilberto Arruda, chefe de obstetrícia do Hospital Santa Isabel. “O que aconteceu com o bebê?” – Lidia se revolvia na cama como que anestesiada pela adrenalina. Lembrara-se do acidente, lembrara-se do bebê. “Fique calma, porque você teve algumas fraturas em decorrência do atropelamento, e é preciso ter cautela ao movimentar-se” – o médico segurou-lhe nos ombros e deitou-a novamente enquanto fixava-lhe os olhos como que a impor confiança.

“Você sofreu um atropelamento muito sério, chegou desacordada no hospital e com hemorragias. Felizmente o hospital é próximo ao local do acidente, por isso não houve quaisquer danos permanentes à sua locomoção. Mas você teve um aborto em decorrência do trauma”. O coração de Lidia desistiu de bater por instantes. Não conseguiu chorar, era como se as lágrimas tivessem acompanhado o coração em seu retiro. Calos chorava. Chorava pelo filho morto que já amava por tanto desejar. Mas segurava com ternura a mão da mulher, na esperança de passar-lhe uma tranquilidade que nunca sentira.

“Estimamos que sua gravidez fosse de aproximadamente dois meses e vinte dias. Fizemos a curetagem e todos os procedimentos necessários. Os medicamentos para a dor já estão sendo administrados neste soro.” – examinou o conjunto que se iniciava com uma bolsa de plástico e fundia-se no braço branco de Lidia. “Não se preocupe, em alguns meses vocês poderão tentar novamente.” – Lidia sequer ouviu as palavras do médico, travestidas de uma esperança tão gentil que Carlos imediatamente tomou para si.

O corpo de Lidia flutuava. A mente suicidara-se em um vácuo tão imenso que podia palpar a dor, conversar com ela, abraçá-la. “Nunca imaginei que seria desta forma” – observou Lidia. “O vazio... A sensação da perda, de não ser mais o que jamais foi”. Carlos beijou-lhe os lábios inertes e ela pode sentir o sal da lágrima que encontrara uma maneira de regar sua sede. O olhar do homem abraçou-a enquanto, com os dedos compridos, ele acariciava uma mecha de seus cabelos ainda sujos de sangue seco – “Apesar dessa dor imensa, querida, você me fez o homem mais feliz do mundo”. Lidia encarou-o confusa. Carlos continuou: “Eu pude finalmente me sentir um pai”.

Uma lágrima percorreu a face de Lidia. Era o coração que brotava-lhe dos olhos num lanço de dor. *


*ESTE TEXTO, AQUI APRESENTADO COMO CONTO, INTEGRA O FOLHETIM "O ÚLTIMO TANGO" NO BLOGUE DA AUTORA.




Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com . Quer ver mais Contação? Clique AQUI!





1 Comentário

Jorge Xerxes

Mariela,

Um Ótimo Conto!

Gostei do forte sentimento transmitido através da narrativa.

Um Beijo! Jorge