domingo, 17 de junho de 2012

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Meias Azuis

Amo Gustavo mais do que tudo. É meu noivo e, a não ser que aconteça uma catástrofe, a não ser que uma bicicleta o atropele distraído pela praça, vamos nos casar em, no máximo, um ano. Ele está para ser promovido no cartório. Disse que se continuar puxando o saco do chefe como já puxa, é promovido em menos de um ano. É só isso que falta para nos casarmos: uma promoção. Com o aumento, vai dar para pagar o aluguel no Catete. É que Gustavo não quer morar longe da mãe. E não é má idéia ter a sogra por perto, uma senhora muito experiente. Ela pode ajudar quando os netinhos chegarem. Se chegarem. Berenice, coitada, casou já tem sete anos e ainda não veio uma criança. Mas ela casou de maneira precipitada. Eu sempre disse, mamãe sempre dizia, "quem casa quer casa, Berenice. Vai viver de que? De vento?", mas ela nem te ligo. Casou com o Geremário, que não tem onde cair morto. Casamento assim não dura, menina. Berenice diz que mais vale o amor. Besteira achar que o amor é tudo. Mas eu amo o Gustavo, que fique claro, mais do que tudo nesse mundo. É claro, sei que ele não é perfeito, como sei que também não sou. Gustavo tem manias. Ele chega em casa todo dia às seis da tarde, desabotoa a camisa de linho e a põe para secar o suor na cadeira antes de levar ao cesto. Livra-se da calça vincada e põe o short de ficar em casa, com uma camisa de algodão. Mas sua mania, eu ainda não disse (por uma vergonha boba, sei lá)... É que Gustavo trabalha de sandália de couro e meia azul.

No início eu também achava pavoroso, mas já me acostumei. Só não consigo olhar. Ele chega em casa, se livra da camisa, se livra da calça, mas permanece com a sandália de couro e a meia azul. Eu tenho que tratá-lo assim, olhando no olho. Se olhar para seus pés azuis na ponta daquele caniço de perna, fico roxa, desconcentro, consigo fazer nada. Ele só retira a sandália para dormir. Ao menos isso. Mas a meia permanece. Amo Gustavo, mas aquela meia... Ele dorme com ela e só a retira na manhã do dia seguinte, ao tomar banho, para colocar outra. Às vezes me pego imaginando que pé pavoroso, de dedos finos e branquinhos, deve ter Gustavo para estar sempre de meia. E quando me ponho a imaginar nossas núpcias, nada me deprime mais do que imaginá-lo nu em pêlo, mas vestido com as desgracildas meias azuis.

Samuel é verdureiro. Verdureiro, ué. Vende aipim na feira. Toda terça-feira eu compro aipim, porque o Gustavo gosta. A mãe dele faz fritinho, com manteiga, fica uma delícia. Ele senta-se à mesa, com suas meias azuis e a sandália de couro: devora! Toda terça-feira, quando peço o aipim ao Samuel, ele não quer me deixar pagar. "Pra moça bonita é de graça", ele diz, às vezes gargalhando, às vezes muito sério. "Mais respeito, Samuel, que eu sou noiva do seu Gustavo, do cartório". Aí então que ele ri mais alto. Acho que verdureiro não vai ao cartório, não é possível. Samuel é um mulato feio que nem cipó, mas é bem alimentado, sabe? Essa semana, na hora de em entregar o saco do aipim, Samuel me segurou pelo braço antes de dizer "pra moça bonita é de graça". Ultrajadíssima! Eu me senti ultrajadíssima! Eu sou noiva do seu Gustavo, do cartório! Minha vontade foi virar a mão na cara do verdureiro safado. Não sei o que me deu, subiu uma coisa, menina. Eu disse "mostra o pé". Assim, na cara dura, nem sei como. Samuel gargalhou e, meio desajeitado, trouxe o pé para cima da barraca, que o ocultou esse tempo todo. O pé do Samuel parecia um sapo gordo e preto, enorme, saudável. As unhas eram largas e muito brancas. A sola era rosadinha, mas via-se delas apenas o contorno, porque ele calçava aquela havaiana azul e branca de pedreiro. As tiras do chinelo pareciam que estavam a ponto de arrebentar, por tentarem sufocar o opulento pé que sustentava Samuel. Um pé bojudo e livre.

Estou noiva do Samuel e nos casamos dentro de uma semana, de qualquer maneira. Se uma bicicleta o atropela distraído na praça, pior para a bicicleta.

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