quinta-feira, 5 de julho de 2012

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As Flores (Conto)


As flores.

Nunca pensei que tudo pudesse ser assim e agora ela está morta, os pés tão juntinhos, as mãos também, o corpo tão formal e distante, com tantas flores à sua volta, com gente lá fora da igreja, tanta gente para se despedir e ela já foi, já se despediu de nós. Só o cheiro e cor das flores tão vivas, tão brilhantes, ficam nos meus olhos e de forma ofensiva e cruel; porquê flores, porquê tanta vida presente na morte parecendo que se ri do que ao seu redor já não há?
Elas não percebem que também nelas o fim está tão presente, tão intenso, na ausência das suas raízes, no chão a que já não se agarram. Elas são parte integrante dessa última viagem e serão deitadas no lixo sem ninguém as lembrar, excepto eu, talvez só eu lembrarei a arrogância inerente às suas folhas que imanam alegria onde ela já não mora.
Já passou algum tempo, anos, mas está tudo tão presente na minha cabeça e nas minhas mãos que se agarram mutuamente para estarem ocupadas, escondendo o transtorno. Quando eu era pequeno, um menino somente, saía da escola, colhia uma flor e dava-lha. Ela ficava contente, tão feliz e punha-a logo num copo. Um malmequer, num pequeno copo, que a alegrava tanto. A flor murchava, mas eu renovava o movimento e trazia outra e outra e não deixava que elas ficassem murchas, tristes na sua mesa. As flores animavam-nos muito. Eram branquinhas, com um pequeno coração amarelo e muitos dedos cheios de pó branco que nos acariciavam a alma. Ela ria-se e dizia «Obrigada, neto» como resposta a uma oração amorosa. Era isso mesmo: uma forma de eu mostrar, sem dizer e perder-me em sons gaguejados, o quanto gostava dela. Fiz o mesmo com uma namorada que nunca foi. Cheguei a casa da minha avó e disse “tenho uma namorada”. Levava uma flor na mão, mas não lha dei, guardei-a para a rapariga que namorava comigo, mas que ainda não sabia. Ela era mais velha, o seu corpo já tinha espantado a meninice, e procurava os beijos que eu ainda não sabia dar. Comi um iogurte e ali, olhando para o seu corpo vazio, vi um pequeno vaso que poderia proteger o que eu queria dar. E coloquei-a lá dentro, mas o malmequer caía, desamparado. Fui buscar um pouco de terra aos vasos lá de casa, «terra caseira», pensei, «vai aguentá-lo», e enchi o copo até quase ao rebordo. Devagar, fiz um pequeno buraco e protegi o malmequer na sua nova casa. Faltava qualquer coisa. Uma carta, um bilhete; tinha de escrever algo para a rapariga saber de quem era a flor. O seu namorado tinha um nome e não era nenhum daqueles vagabundos que tocavam à campainha de sua casa. Peguei numa caneta de que gostava muito, tinha um homem-aranha capaz de derrotar todos os inimigos, e comecei a escrever.

"Para a Débora..."

Muito devagar, voando sobre a folha, escrevi com a caligrafia que havia sido premiada com um rebuçado pela professora da primária. Nesse dia quase chorei, com todos a baterem palmas, quando recebi das suas mãos de dedos compridos, sapientes e engelhados, um rebuçado de caramelo.
A varanda da sua casa era muito alta e eu muito pequeno. Subi para os ombros do Nuno, tirei a carta do bolso e coloquei o pequeno vaso “Yoplait” sobre a folha. A flor era linda. Um malmequer grande e feliz apontado ao céu. O Nuno quase me deixou cair. Já não o vejo há muito tempo e tenho a certeza de que hoje ele não me conseguiria levantar e aguentar nos seus ombros. Não sei o mês, dia e muito menos as horas em que tudo isto sucedeu. Era um dia como outro qualquer. Não me esqueço, no entanto, de, no dia seguinte, ver a flor caída, de apanhar o vaso amachucado e desenrolar a bola de papel em que se tinha transformado a minha carta. Umas semanas mais tarde, ela viu-me e sussurrou aos ouvidos do namorado. O sorriso de ambos queimou-me como só a vergonha consegue queimar.
Ainda hoje passo por ela e sinto a aragem de um amor rejeitado precocemente. Foi ela que me fez sentir o primeiro desgosto de uma flor rejeitada. Depois, quase por distracção, a paixão desapareceu, murchou, repentinamente. Mas se assim o fez, foi para renascer e brotar com mais força, com mais vontade de dominar e mostrar que, sob o seu domínio, não tenho sido mais do que espectador dos meus gestos. E, então, ao longo dos anos, voltei às palavras e às flores, entreguei-me a cada beijo e quis, ansioso, sentir toda a envolvência misteriosa do corpo da mulher.
Não é o que sinto neste momento. Olho para as coroas de flores, tantas de volta do seu corpo, muito brilhantes e coloridas que me põem tão triste porque, sem ela, não têm qualquer significado além de intensificar a dor da perda e a negação da sua permanência.
Num ramo cabem todas as palavras. Podem mostrar-se vivas e frescas que não servem para mais nada, senão intensificar a mudez da boca dela, a imobilidade do corpo e a ausência de cor na sua face.
E mais uma vez sinto-me crescer, obrigatoriamente crescer e envelhecer, e obrigado a deixar de dar uma flor pequena que seja.
Houve um dia, um outro rasgo na realidade, em que deixei de as dar.
Eu colhia-as e guardava-as entre os dedos pequenos de uma mão, numa concha húmida que protegia as flores só para ela. Fui crescendo e continuava a oferecê-las, mas depois veio aquela fase em que é suposto, não sei por quem, nós deixarmos de dar flores e avançar, não sei para onde, mas avançar na idade. Eu senti esse preciso momento em que os meus movimentos cederam perante as palavras, eu senti porque ouvi dizer «ele é esquisito» e comecei a pensar na razão de o ser, pois eu tinha sido sempre assim. Fiquei atento, talvez eu estivesse doente, ou outra coisa qualquer, e só percebi quando ouvi, logo de seguida, «ele é amaricado». «Amaricado?», pensei, confundido, enquanto apanhava flores e eles caminhavam atrás de mim. «Ele é amaricado. Olha para aquilo! A apanhar flores…». E tanto ouvi que fiquei muito preocupado, «Eu seria maricas?». Havia um, segundo me contaram, que morava num prédio próximo do meu e que gostava de flores. E de homens. Eu não gostava de homens, mas gostava tanto de flores! «Seria meio-maricas?»
No meio de uma crise mais aguda em que um rapaz me perguntou «tu gostas de homens?» e em que eu respondi com uma bofetada e recebi três ou quatro ou cinco, decidi não colher mais flores. Ele era só um, mas mais parecia ser dois. Levei tanto pontapé e bofetada que, desde esse dia, especializei-me na arte de fugir rapidamente, a correr, de preferência ainda antes de me verem. Comecei a apanhar lagartixas. Não era tão bom, eu tinha pouco talento para a caça, mas lá conseguia apanhar uma ou outra mais desprevenida. Fazia uma pequena forca com um caule resistente, mas maleável, e agarrava-as pela cabeça e era vê-las espernear e a largar o rabo. Perder o rabo. Elas, sim, eram mariconças, pois davam logo o rabo quando eram caçadas. A primeira que apanhei deu-me uma grande alegria porque todos viram e podiam, finalmente, deixar de pensar coisas tontas. E fiquei tão alegre que a levei para casa, já quieta, imóvel, pendurada pelo pescoço, e mostrei-lhe e dei-lha, «é para ti», com muito amor e orgulhoso da minha perícia. Ela gritou. Não sorriu, não me deu um beijo, não a guardou num vaso, só gritou. Aí eu percebi que nem todo o objecto ou animal pode conter tudo o que queremos dar. A lagartixa não podia guardar o meu amor por ela.
Só voltei a apanhar flores, anos mais tarde, quando o peito me começou a arder. Queixei-me, «tenho aqui qualquer coisa, não sei bem o que é», fomos ao médico e ele disse que estava tudo bem, era só alguma ansiedade que me punha em sobressalto. Já tinha ouvido falar de rubéola, sarampo, varicela, mas daquilo não. E ele tinha razão. Cada vez que me aproximava da Inês, tinha um desses ataques de ansiedade. Começava a transpirar, as palavras tropeçavam todas na língua e caíam desconjuntadas. Um dia...um dia ofereci-lhe flores. Ela gostou, cheirou-as e, sem eu perceber porquê, deu um beijo abrupto nos meus lábios e fugiu. Tão depressa senti os lábios dela como os deixei de sentir. Não foi meigo, não foi a cheirar a rosas e alecrim, nem vi o fulgor das estrelas. Se houve eclipse lunar, solar ou planetas a nascer, eu não dei por isso. Distraí-me! Mas podia acontecer tudo o que nos livros acontece, que nada, mas mesmo nada, seria tão perfeito como aquele primeiro beijo.
O que as flores podem fazer.

II

Eu quero falar, mas a garganta fecha-se e nada vem cá para fora. O sexo, a morte, a alegria, a tristeza são partes complementares de um todo, são integrantes de uma violência emocional, física, explosiva que nos lança desamparados para uma violação cronológica. Todos os acontecimentos, os cheiros, os sabores, tudo o que sentimos nos vem ao cérebro, aos olhos, à boca em simultâneo, em turbilhão, em desordem.
Está com os pés e mãos tão juntinhos.
Está tão quieta como ela queria que eu estivesse, “Pára sossegado”, por vezes, “Tens o diabo no corpo”, quando eu era malvado, só pensava em futebol, e pontapeava bolas de papel e fita gomada que batiam com estrondo, nas paredes, “Põe-te na rua”, e eu não a ouvia, não queria sair, estava tanto calor ou chovia tanto, “Não jogues à bola na sala”, e aquele estádio era coberto, cheio de adversários de porcelana e balizas nos móveis, “Tu ainda partes alguma coisa”, onde por vezes não acertava, “Rapaz do diabo que me partes tudo. Sai daqui”.
O relógio de parede badalava para o fim do jogo, para o silêncio póstumo, tempo da sesta. Eram horas tão tristes! As badaladas aniquilavam os gritos, os remates, os golos que eu tinha marcado. O silêncio impunha-se, lento e pastoso, nos meus ouvidos e olhos que se fechavam contrariados.
Hoje, digo tantas vezes ao pequenito “sai daqui que me partes alguma coisa”, mas ele chuta e chuta e eu grito, “sai daqui!”, e ouço a minha voz como se fosse a dela; ele pergunta porque não pode chutar, “porque podes partir alguma coisa aqui na sala”; e no quarto? “os vizinhos não gostam; faz muito barulho”, então ele sai amuado enquanto ouço-a sussurrar “vai brincar para a rua”. Eu receio, avó, receio mandá-lo para a rua jogar futebol porque, de facto, há realidades diferentes, tudo é mais perigoso, mesmo que a minha cabeça não saiba bem, por vezes, em que tempo está e a que pertence.
 Ele gosta de caminhar ao meu lado, quando o vou buscar à escola e quer sempre levar flores para a mãe. «Olha esta tão bonita» e dobra-se e arranca-a pela raiz, mas não fica satisfeito e arranca outra e dá-ma e eu fico mais leve, quase voando, embevecido por aquele gesto tão simples pousar tão forte nas minhas mãos agora mais engelhadas.
III
Desejava que todas as flores murchassem por momentos. E todos os sons se suicidassem nas gargantas e o ruído de tudo se suspendesse. Só por um instante. Assim, todos sentiriam o vazio que há no meu peito enquanto vejo o corpo dela a despedir-se de mim numa coluna de fumo em direcção ao céu. Um amontoado de flores velhas apodrece junto aos contentores. Se o meu filho aqui estivesse, iria procurar as mais bonitas, desprezando e eliminando a morte que nos rodeia. Escolheria as flores mais vivas entre as velhas e murchas, separaria o novo do antigo, e diria, como disse uma vez quando vínhamos da sua escola: «são para a mãe. São iguais ao ramo do vosso casamento. Aquelas que a mãe tem na mão quando casaram. Aquela foto onde vocês estão muito contentes.» E continuaria a escolhê-las sempre a pensar na alegria que a mãe iria ter.
O amor pousado nas suas mãos, sempre que renova esta vontade de oferecer um malmequer, uma rosa, ou uma simples folha, enche-me o peito de alegria e empurra o vazio para um canto, lá bem para o fundo, de onde virá a sair para ser derrotado, novamente. Sempre.

2 comentários

Arnoldo Pimentel

Um texto emocionante meu amigo, parabéns.

Mário Rufino

Muito obrigado, Arnoldo!
Grande Abraço
Mário