9.
A filha de Ariane nascera. Tinha um pouco
de lua em seus olhos furados de azul semântico,levemente curvos por entre os
cílios. Ângelo parecia ressabiado.
Ansiava por tornar circunflexa e ardilosa de Sol aquela mulher de
mármore e orgulho e vê-la, assim, a filha nos braços, um longo abraço de
ausência envolvendo as duas, caladas, circunspetas, remando pelas tardes e
pelas noites um começo de frio...
-
Chegue-se até nós – ela convidou.
Ele veio, passos tímidos, hesitantes até.
- Não sei
com quem ela se parece...
- É uma
outra.
- E nós ?
- Aqui,
nesse vento. Você viu o céu e o mar, sem perder o brilho, escureceram, eu diria
que estão enfiados em uns profundos... já os tinham ?
- Creio que
sim. Veja a turquesa da orla! Sempre me encanta.
- Já
começo a conseguir ondear-me pelas fragrâncias da memória que não é colada a
fatos, mas a essências, essas reminiscências de perfumes, sombra e luz,
desejos, presenças, ardores, perfurações de energia e matéria. Enfim, aquele
cordão da consciência com o seu cosmo, o que se vai além, que dá a medida e
configuração de si.
- Que
procura Ariane ?
- E você?
- Você
sabe que já encontrei o ponto de meu assento, os ombros altos aonde verto a
vertente, os fatos e um bom pedaço de néctar.
- O
exaltar do dia e das primeiras velas movidas da noite. Ralas nuvens, água
servida no cálice cristal líquido, a primeira certeza firme e fina de si.
- Você
não é assim...
- Embora
me chamem Ariane. Sou agarrada à firmeza do contorno que, um pouco opaco, vigia
na mente, essa retida no poente, uma tarde de brisa e bosque, águas de rio. Mas
já me enfado e quero colorir magos e imagens, ser feliz.
- E não
era...
-
Deram-me um amplo terraço, uma esguelha de Águia, soluços e alguns livros,
compasso e muita régua, traços, traços, espaços... marítimas ondas de
severidades, bons amigos, vez ou outra alguma dança, lembranças, um Sol vadio e
muito amarelo, carente, escondido e compacto atrás de uns montes muito verdes,
crianças correndo as esquinas das praças, os fartos bigodes de uns tantos
homens, suas mãos firmes de desejo e opressão, pois sempre me sondavam a alma,
o estilo , o espírito... um mundo cocho, fervido de ladrilhos, arqueados de
pontes e pomares. E assim poderia escorrer mais alguns milhares de anos e
contar os filhos, os amantes, os brindes, os desenhos, os quase desejos, as
virtudes, a dignidade, os cumprimentos, as verdades. Acontece que em nada
acredito se não me fascina o instante, se não sinto por dentro dele a vertigem
da existência. É por isso que me quer?
- Creio
que sim. Se você conseguir levar aos pés do povo e sua prole esse santuário
pagão e imponente que desde o começo dos tempos carrega seus caracóis e
lantejoulas, pois então que seja teu, que seja eu a ajoelhar-me e você a
inventar as formas até que consigamos navegar para uma melhor órbita.
- E não
mais precisarmos retornar a essas virtudes.
- Pois
teremos espalhado nossas imagens em seus vidrilhos e espumas.
- Acho
que você entendeu. Essa é tua filha, Ângelo. Nasceremos, enfim, enfim, no ritmo
arqueado fluído, ao fundo, profundo, latejante mar. Ângelo, será profundo esse
barco de nascimento e navegação, aonde os fragmentos colam-se no colar remanso
do verbo, tua voz, nuance e leme do meu corpo.
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