quarta-feira, 4 de julho de 2012

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O ANJO 9 - JANDIRA ZANCHI




9.

     A filha de Ariane nascera. Tinha um pouco de lua em seus olhos furados de azul semântico,levemente curvos por entre os cílios. Ângelo parecia ressabiado.  Ansiava por tornar circunflexa e ardilosa de Sol aquela mulher de mármore e orgulho e vê-la, assim, a filha nos braços, um longo abraço de ausência envolvendo as duas, caladas, circunspetas, remando pelas tardes e pelas noites um começo de frio...
- Chegue-se até nós – ela convidou.
     Ele veio, passos tímidos, hesitantes até.
- Não sei com quem ela se parece...
- É uma outra.
- E nós ?
- Aqui, nesse vento. Você viu o céu e o mar, sem perder o brilho, escureceram, eu diria que estão enfiados em uns profundos... já os tinham ?
- Creio que sim. Veja a turquesa da orla! Sempre me encanta.
- Já começo a conseguir ondear-me pelas fragrâncias da memória que não é colada a fatos, mas a essências, essas reminiscências de perfumes, sombra e luz, desejos, presenças, ardores, perfurações de energia e matéria. Enfim, aquele cordão da consciência com o seu cosmo, o que se vai além, que dá a medida e configuração de si.
- Que procura Ariane ?
- E você?
- Você sabe que já encontrei o ponto de meu assento, os ombros altos aonde verto a vertente, os fatos e um bom pedaço de néctar.
- O exaltar do dia e das primeiras velas movidas da noite. Ralas nuvens, água servida no cálice cristal líquido, a primeira certeza firme e fina de si.
- Você não é assim...
- Embora me chamem Ariane. Sou agarrada à firmeza do contorno que, um pouco opaco, vigia na mente, essa retida no poente, uma tarde de brisa e bosque, águas de rio. Mas já me enfado e quero colorir magos e imagens, ser feliz.
- E não era...
- Deram-me um amplo terraço, uma esguelha de Águia, soluços e alguns livros, compasso e muita régua, traços, traços, espaços... marítimas ondas de severidades, bons amigos, vez ou outra alguma dança, lembranças, um Sol vadio e muito amarelo, carente, escondido e compacto atrás de uns montes muito verdes, crianças correndo as esquinas das praças, os fartos bigodes de uns tantos homens, suas mãos firmes de desejo e opressão, pois sempre me sondavam a alma, o estilo , o espírito... um mundo cocho, fervido de ladrilhos, arqueados de pontes e pomares. E assim poderia escorrer mais alguns milhares de anos e contar os filhos, os amantes, os brindes, os desenhos, os quase desejos, as virtudes, a dignidade, os cumprimentos, as verdades. Acontece que em nada acredito se não me fascina o instante, se não sinto por dentro dele a vertigem da existência. É por isso que me quer?
- Creio que sim. Se você conseguir levar aos pés do povo e sua prole esse santuário pagão e imponente que desde o começo dos tempos carrega seus caracóis e lantejoulas, pois então que seja teu, que seja eu a ajoelhar-me e você a inventar as formas até que consigamos navegar para uma melhor órbita.
- E não mais precisarmos retornar a essas virtudes.
- Pois teremos espalhado nossas imagens em seus vidrilhos e espumas.
- Acho que você entendeu. Essa é tua filha, Ângelo. Nasceremos, enfim, enfim, no ritmo arqueado fluído, ao fundo, profundo, latejante mar. Ângelo, será profundo esse barco de nascimento e navegação, aonde os fragmentos colam-se no colar remanso do verbo, tua voz, nuance e leme do meu corpo.

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