quarta-feira, 25 de julho de 2012

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Rotina II

Acordo cedo todos os dias. Mais precisamente, ao meio-dia. Sempre nu, morrendo de frio e com o nariz entupido, não importa a época do ano. Isso porque o ventilador, não importa a época do ano, embala meu sono com seu barulhinho agradável, mas para isso tem de me soprar uma ventania gelada no dorso. Ele é assim, irredutível, mas precisamos um do outro. É o mais próximo que cheguei de um casamento bem sucedido.

Sou generoso comigo mesmo. Sempre me concedo até a uma da tarde para sair da cama e entrar em um banho quente. Não exatamente demorado, nem exatamente rápido. Acontece que a pressa também é inimiga da imperfeição.

De banho tomado é mais fácil decidir se vou almoçar ou tomar café da manhã. Para isso, levo em conta o estado dos meus humores, no sentido clássico da palavra. Bem como o que há na geladeira. Sento para comer à mesa da sala. Sempre na mesma cadeira. Quando suas articulações amolecem, a troco de lugar com uma das outras cinco, mas continuo sentando à mesma posição. Já troquei umas duas vezes, mas acho que não viverei o suficiente para esgotar esse jogo de jantar. Ligo a tv sem som, apenas para ver as pessoas que têm pressa. E como elas têm pressa! Às vezes me irrito e desligo a tv. Entre uma garfada e outra, degusto as páginas de um livro.

Infelizmente, em algum momento a comida acaba. Então me resta ir à terapia: lavar a louça. Faço isso com esmero, um exercício de análise interminável. Lavar a louça, além de terapêutico, é uma arte. A não ser panelas e potes muito engordurados. Esses desagradam os meus transtornos. Ao término, encho um copo com água da bica para molhar as plantas. A planta, em verdade. É um único vasinho com suculentas, mas em algumas tardes é o único motivo para que eu saia da cama: alimentá-las. Reparei, ao longo desses anos de convivência, que elas são como eu e não gostam do sol. Contentam-se com um copo de água todas as tardes. E reparei ainda que preferem a água da bica.

Quando ambos estamos alimentados, é hora de trabalhar. Sento-me ao computador, com o bloco de notas aberto e é bom que as histórias fluam. Nem sempre acontece, o que me obriga a revisar infinitamente textos antigos. Só não me permito faltar ao trabalho, trabalhando em casa. No entanto, propositalmente, a escrivaninha fica bem ao lado da cama. Quando cansam a cabeça ou as costas, permito uma mudança de ares e de posição, mesmo que por poucos minutos.

Eventualmente, caminho até o sofá e ponho volume na tv. Mas isso em dias ruins, em que as idéias estão muito complexas e é preciso idiotizá-las um pouco. Costuma funcionar, escrevo melhor (menos pior) na volta.

Por volta de oito da noite, interrompo as atividades para o meu primeiro jantar. Normalmente comida mesmo. Costumo ver as notícias durante essa refeição. Sempre tristes. Lavo louça de novo, com menos afinco do que da primeira vez. Lavar a louça de noite me deprime, não sei porquê. Ainda não tratamos disso na nossa terapia. Mas assim, algo deprimido, o trabalho flui melhor na volta. Sento na cadeira de onde só levanto às duas da manhã, para um segundo jantar. Minha vida é comer e trabalhar. Mas dessa vez, algo que não suje a louça, ou que suje muito pouco, porque só vou lavar após o almoço do dia seguinte.

Mais trabalho. Um pouco de música. Na madrugada, o silêncio está sujeito às boas causas e não se pode desperdiçá-lo.

Já passam de quatro da manhã. Estou satisfeito com alguns parágrafos. Hora da caminhada. É a primeira vez no dia que coloco uma roupa e, ainda assim, por pura complacência com a sociedade. Também porque não existe verão de madrugada, mesmo no Rio de Janeiro.

Nessas horas, sou o único na Rua das Laranjeiras. O Mercado de São José está dormindo, ele sonha com os tempos áureos. Na Rua Gago Coutinho, o Parque Guinle sopra uma brisa com cheiro de planta, avisando que vai chover. Ainda bem. O Largo do Machado é só meu e das floriculturas. É como se estivéssemos em um filme desses de apocalipse zumbi, A Terra Sem Ninguém ou qualquer coisa grandiosa assim. Sinto que sou o último homem a pisar nessa cidade. Mas eis que surge um tarado no horizonte. Tênis e shortinho de corrida. Ele é o primeiro. Pode até ser preconceito meu, mas não confio nessa gente. Um homem capaz de fazer cooper às cinco da manhã é capaz de fazer qualquer coisa. Sua presença me avisa que a rua já não me pertence exclusivamente.

Decido voltar para casa. Ainda tenho um capítulo para ler antes de dormir, o que deve acontecer impreterivelmente antes dos primeiros raios de sol. Há movimento na banca de jornal, mas as notícias são as mesmas de ontem. A manhã se faz com sonhos.

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