quarta-feira, 18 de julho de 2012

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ÚLTIMA NOITE ou A PAREDE QUARTA - Milena Martins

Pode haver dentes escuros naquele sorriso. Pode haver unhas cortantes no afago, veneno no beijo, mordida na jugular e sangue. Pode haver libertação pela dor. Grito de medo.

Não será o que parece, será casca. Será cena, será cortina aberta. Será poço de orquestra ou elevador. Será lâmina-d'água, fria, bisturi e sangue. Veia partida.

Não tenho você essa noite. Não tive pela manhã. Tenho os cântaros vermelhos dos olhos e umas roupas no baú. Tenho saudade e ódio, amor embrutecido e represado, vontade de toque e do olhar de encanto que sumiu com a tonteira do relógio redondo. Tenho, enfim, toda a verdade que acabou quando o mundo nasceu.

A música não nos une. Não nos une a imagem. Nem a luz, nem os móveis, nem as falas nem o diretor. Não nos une o público que parou pra aplaudir o aceno.

Você foi embora pintado de verde há muitos anos, de madrugada. Enquanto eu dormia decorando o corredor. Você foi embora sem fechar sobre mim a quarta capa. Eu ainda cortando os talos, molhando as flores, dispondo os vasos sobre a mobília, lustrando o piso. Você pisando firme do lado de fora, se tacando nos paralelepípedos, pulando a fogueira. Sapateando um número qualquer muito longe de mim.

Cabeças decepadas de camarão assombrando o jantar, enxurrada na tempestade. Idílico o terremoto de todos os dias. Empurrão da escada, joelho ralado. E os créditos subindo.

O barbershop quartet da trilha sonora mente que o amor é esplendoroso. Há figurantes dançando com guarda-chuvas lá fora. Chego no cenário acendendo os refletores, você sentado no sofá. Lombadas dispostas na estante. Verde estufado no pão dos milagres.

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