quinta-feira, 30 de agosto de 2012

0

João Cabral Melo Neto: A Divisão das Águas



Introdução

Este ensaio intitulado “João Cabral Melo Neto: A Divisão das Águas” foi produzido no âmbito do seminário de Literaturas dos Países de Língua Portuguesa (2006), na Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
É composto por duas partes aparentemente distintas:
A primeira parte foi amplamente debatida em grupo e aborda a questão do colonialismo cultural e, essencialmente, do pensamento.
É uma situação que está na génese do nascimento das literaturas de expressão portuguesa:
Em Angola, entre 1882-1949, na narrativa, são incontornáveis autores como Alfredo Troni, António de Assis Júnior, Óscar Ribas e o neo-realismo de Castro Soromenho.
Na poesia, no período entre 1849-1948, são preponderantes os nomes de Maia Ferreira, Tomaz Vieira da Cruz e Bessa Victor.
Posteriormente, de Agostinho Neto a Pepetela passando por Luandino Vieira, a literatura angolana foi-se emancipando gradualmente da cultura europeia. A sua temática é ca
Em Moçambique, podemos partir de “Msaho” de Noémia de Sousa e chegar a Mia Couto. Nesse caminho vários são os autores que devem ser consultados: Craveirinha, Knopfli,etc.
Em Cabo Verde, temos o movimento da “Claridade”, a poesia de Jorge Barbosa e a narrativa de Manuel Lopes. O neo-realismo cabo-verdiano, Luís Romano e Teixeira de Sousa e a “literatura de resistência”.
Com grandes diferenças de projecção e amadurecimento, a literatura das antigas colónias (ou províncias) conquistaram a sua independência.
Mas nenhuma o fez com o fulgor da literatura brasileira.
Da literatura do Brasil à literatura brasileira várias foram as etapas e os autores que as delimitaram:
Da Carta de Achamento ao despontar do Barroco; do Arcadismo de Santa Rita Durão, Basílio da Gama ao Romantismo.
José de Alencar é um nome fundamental na afirmação da brasilidade com “O Guarani” e “Iracema”.
Depois temos Machado de Assis (D. Casmurro), Aluísio Azevedo e muitos mais; os movimentos desde o Naturalismo até ao Modernismo («Tupi or not tupi»).
O autor que foi escolhido para a parte principal (2ª) deste ensaio, João Cabral Melo Neto, coloca alguns “problemas” de periodização pois, como se denota, não pertence à geração cronológica dos autores seus contemporâneos.
A razão de estudar de forma aprofundada este autor baseou-se na presunção de “haver qualquer coisa” na sua poesia que seduz e, no entanto, repele.
Não existe o objectivo de apresentar qualquer ideia nova, qualquer perspectiva diferente sobre a literatura de Melo Neto. Pelo contrário, o objectivo foi sempre a aprendizagem da sua obra tendo por companhia e, de certa forma,  guia, os autores que dedicaram o seu tempo a aprofundarem o conhecimento sobre João Cabral Melo Neto.
Durante a leitura da sua poesia, foram esses autores que me levaram “pela mão”, alumiando a riqueza poética que até aqui era somente vislumbrada.



Cap. I
O colonialismo do pensamento

Uma relação de dependência necessita pelo menos de dois elementos. Numa situação colonial existe um nativo colonizado e um outro no papel de colonizador. Cerca de três quartos do mundo contemporâneo foi directamente e profundamente afectado pelo imperialismo e colonialismo. Os processos literários de descolonização envolveram um desmantelamento drástico dos códigos europeus até aí vigentes e, também, a subversão pós-colonial e apropriação do discurso europeu. Com a descolonização houve a necessidade da criação de um discurso novo recuperando, de forma utópica, uma realidade livre de qualquer influência colonial.
A “pureza” da cultura anterior à colonização não pode ser recuperada. O hibridismo cultural passa a ser uma realidade que implica uma relação dialéctica entre a cultura colonizadora, dominadora e aniquiladora da diferença, e a cultura colonizada, impulsionada para a criação ou recreação da independência local. O processo de descolonização é um processo, não um objectivo, que invoca a mencionada dialéctica entre os sistemas de controlo e subversão e a necessidade de afirmação, ou seja, criação e recriação da cultura pré-colonial. Diagnosticada a impossibilidade desse movimento de criação da cultura pré-colonial, o objectivo do pensamento do pós-colonial concentrou-se na interrogação do discurso europeu.
O contexto da construção do discurso literário e cultural influencia a postura de contra-discurso. Esta posição tem intrínseca uma forte componente social de desidentificação cultural.
Segundo Thomas Bonnici, Fanon propõe um esquema que contempla três fases durante a ocupação colonial:
«A “fase de assimilação” acontece quando “o intelectual nativo realmente demonstra haver assimilado a cultura do poder colonizador. Seus escritos correspondem exactamente, ponto por ponto, aos temas e às formas literárias do país colonizador. Sua inspiração é europeia e facilmente pode-se ligar essa obra às tendências definidas na literatura do país colonizador.
Na segunda fase, chamada “fase cultural nacionalista”, o intelectual nativo lembra a sua identidade autêntica e reage contra as tentativas dos colonizadores de obrigá-lo a assimilar a cultura europeia. Todavia, sua rejeição não é bem-sucedida e suas tentativas de recuperar e reintroduzir as antigas tradições filosóficas e convenções estéticas elaborados do ponto de vista do colonizador. (...) Há também a fase nacional, a fase da luta, ou a “fase revolucionária e nacionalista”. Nesse estágio, “o intelectual nativo, após ter-se entranhado com o povo e no povo, começa a inflamar o povo...torna-se o despertador do povo”. Nesse estágio, realiza-se também o contacto de um grande número de nativos com as realidades da opressão colonial, e tal fato contribui para uma democratização da conscientização e da expressão cultural e literária.» (BONNICI:2000,pp 27,28)
O ressurgimento do passado glorioso nos textos literários é um mecanismo defensivo utilizado pelos intelectuais nativos para se afastarem da cultura ocidental.
Interpretando as ideias de Fanon pode-se abordar a reestruturação da cultura nacional passando por várias etapas necessárias à mesma:
-o escritor ou intelectual tem necessidade de ver e compreender o povo através de um processo de imersão cultural; a acção cultural não pode ser separada da luta pela libertação nacional; a preocupação do escritor ou intelectual nacionalista com o passado deve estar sempre presente para que se prepare o futuro através da motivação proporcionada pela esperança.
A libertação política e económica é uma condição imprescindível para a libertação cultural.
A liberdade criativa e imaginativa do povo somente atinge o seu expoente máximo quando a cultura nacional se emancipa, ou seja, quando a totalidade da arte do povo colonizado, a sua ciência e suas instituições sociais, seu sistema de crenças e ritos que, frequentemente, são expressos através das canções populares, danças, contos, pinturas, esculturas, cerimónias, etc. se autonomizam.
A aquisição de uma consciência anti-colonial e o consequente “despertar” nacional representa o que o colonizador tentara arduamente dizimar devido ao conhecimento de a cultura ser uma poderosa força aglutinadora da sociedade colonizada.
O colonizador tem consciência de que é ele que elabora a história. A referência temática à sua metrópole demonstra que ele é uma extensão do seu país. Assim sendo, a história que ele escreve não é a história do país colonizado, pelo contrário, ele continua a escrever a sua história enriquecida pelos efeitos da colonização.
A reacção pode tardar mas acontece. Fanon sugere três estratégias:

-                                                    A criação de laços entre povos que foram separados pela colonialismo em tribos e culturas autónomas.
-                                                    A dessacralização e a desmistificação da metrópole, a partir da qual um novo sistema de poder substituiria a hierarquia colonial.
-                                                    A valorização da cultura vilipendiada pelo colonizador.

Continuando a seguir a perspectiva de Fanon, o autor explica o processo de conscientização do intelectual nativo caracterizado por três fases:
a) O intelectual nativo ganha consciência do que é. Do passado ele traz a vida cultural do povo.
 b) Posteriormente, a fase da luta, onde o intelectual começa a influenciar a consciência das pessoas.
c) A partir desta altura, nasce a verdadeira literatura nacional.
No âmbito de uma literatura pós-colonial acontece, frequentemente, o fenómeno da reescrita e releitura de textos oriundos de culturas coloniais. Esta releitura/reescrita tem por objectivo a análise dos efeitos da colonização na produção literária.
A reescrita e releitura sendo diferentes são, no entanto, ambas características do pós-colonialismo que fornecem uma visão crítica não somente do corpus literário, mas também da ideologia que o alimenta.
A reescrita acontece quando um autor se apropria de um texto, normalmente canónico, onde analisa as personagens e/ou a sua estrutura criando um novo texto que tem a função de responder , de uma posição pós-colonial, à ideologia contida no primeiro texto.
A releitura baseia-se numa estratégia na qual o leitor repara na posição ideológica, política e nas implicações sociais da colonização assim como na construção , expansão e estabelecimento do império.
Se pensarmos no imperialismo como pensamento de colonização, controlo de terras que não são nossas, que estão distantes, e, obviamente, habitadas por outros, a releitura, então é a desmistificação e desconstrução de um discurso de superioridade que não corresponde à realidade; é a destruição de um complexo de inferioridade estabelecido por uma visão anexada à metrópole, ao pensamento dito evoluído e civilizado. É a implantação de uma identidade, elemento fundamental de uma colonização pois funciona como articulador, como ponto de ligação, entre os discursos e as práticas que nos interpelam e nos colocam no nosso lugar enquanto sujeitos sociais.
Segundo José Manuel Oliveira Mendes, «(...) é necessário realçar a necessidade de um sentimento individual de permanência identitária, permanência esta que é elaborada narrativamente dentro dos discursos activados em contextos distintos. Importante é também a questão do poder e da desigualdade no processo identitário. A posição no espaço social, o capital simbólico de quem diz o quê, condiciona a construção, legitimação, apresentação e manutenção das identidades» (OLIVEIRA MENDES:2002, pp491).
O mesmo autor afirma ainda: «A identidade social é um cruzamento de atributos pessoais e estruturais, uma categorização derivada dos contextos sociais onde decorre a interacção social. Pode distinguir-se neste processo uma identidade social virtual e uma identidade social real. A identidade social virtual é constituída pelas exigências e características que imputamos aos indivíduos. A identidade social real são os atributos que aqueles realmente possuem e as categorias reais a que pertencem» (OLIVEIRA MENDES:2002, pp495).

Edward Said afirma que os homens fazem a sua própria história e referindo-se aos conceito de Oriente e Ocidente reafirma que é uma ideia detentora de história e tradição de pensamento, de imagens e construção de um léxico que conferiu uma existência.
A construção do “orientalismo” não é muito distante da construção da ideia de Europa, noção de um colectivo que nos adjectiva como europeus, distanciando-nos dos outros que não são europeus. Pode-se afirmar que o principal factor da cultura europeia é o que contribui para que esta cultura seja hegemónica dentro e fora da Europa – O conceito de superioridade sobre todos os povos e culturas não europeias.
Segundo Said, «Não há nada de misterioso ou natural na autoridade. Forma-se, irradia-se e dissemina-se; é instrumental, é persuasiva; tem estatuto, estabelece cânones de gosto e valor; é virtualmente indiscernível de certas ideias que dignifica como sendo verdadeiras, de tradições, percepções e juízes que efectua, transmite e reproduz.» (EDWARD SAID:1997, pp22)
Quando para um povo é tempo de libertação, o ambiente cultural é dominado pela incerteza e indecisão. Para Fannon, o povo que inicia a libertação e provoca a instabilidade de uma revolução cultural é portador de uma cultura híbrida.
As pessoas são, nesse momento, o principio de uma dialéctica reorganizacional entre o tempo antes da colonização e o colonial.
O processo que acontece da descolonização ao pós colonial exige uma nova visão metodológica e dialogante com o mundo global, Impõe-se a atitude a abertura a novos espaços e ao que isso significa: -Novos conceitos socioculturais; equilíbrio entre tradicionalismo e a adaptação da tradição e, finalmente, a recusa das instituições e significações tanto do colonialismo como dos regimes pós-independência.
Confesso que ao pensar neste tema não consigo deixar de contar a maravilhosa história de Ngugi Wa Thiong´o que serve de exemplo para a colonização cultural e posterior inflexibilidade da cultura dominante.
Conta-nos Ngugi Wa Thiong´o que nascera no seio de uma  larga família composta pelo pai, as suas quatro mulheres e vinte e oito crianças. Pertencia, segundo ele, a uma extensa família e a uma comunidade vista como um todo.
Falavam Gikuyu quando trabalhavam nos campos e, também, em casa.
A “oratura” era uma constante. Muitas eram as tardes onde os contadores de histórias se reuniam à volta da fogueira e as contavam às crianças. Estas por sua vez recontavam-nas às outras que trabalhavam no campo colhendo folhas de chá e grãos de café para os patrões europeus e africanos.
Havia bons e maus contadores. O bom era aquele que contava vezes sem conta a mesma história, fazendo-a parecer sempre novidade. Dava “vozes” às personagens, encenava os acontecimentos, enriquecia a língua com os gestos e a entoação. Assim, aprendia a musicalidade da sua língua, janela para o mundo.
A língua de aprendizagem, a língua de comunicação social, e a língua de comunicação laboral era só uma.
No entanto, esta harmonia foi quebrada quando Ngugi foi para a escola (colonial). A língua de educação não correspondia à língua da sua cultura. A língua inglesa passou a ser a ser a língua da educação formal.
Conta-nos o autor que passou por várias humilhações por ter sido ouvido a conversar em Gikuyu enquanto os falantes de língua inglesa eram recompensadas através de prémios, prestígio, aplausos, etc. A língua inglesa era uma medida de inteligência.
O ensino de literatura era, agora, ditada pelo cânone desprezando a “oratura” das outras línguas.
A língua e a literatura forma afastando gradualmente as pessoas da cultura de origem.
« (...) communication between human beings is also the basis and process of envolving culture. In doing similar kinds of things and action over and over again under similar circumstances, similar even in their mutability, certain patterns, moves, rhythms, habits, attitudes, experiences and knowledge emerge. Those experiences are handed over to the next generation and become the inherited basis for their further action or nature and on themselves. There is a gradual accumulation of values which in time become almost self-evident truths governing their conception of what is right and wrong, good and bad, beautiful and ugly, courageous and cowardly, generous and mean in their internal and external relations. Over a time this becomes a way of life distinguishable from other ways of life. They develop a distinctive culture and history. Culture embodies those moral, ethical and aesthetic values, the set of spiritual eyeglasses, though which they come to view themselves and their place in the universe. Values are the basis of people’s identity, their sense of particularity as members of human race. All this is carried by language. Language as culture is the collective memory bank of people’s experience in history. » (NGUGY WA THIONG´O: pp. 289)

A cultura é indistinguível da língua, espelho e veículo da mesma de geração em geração. A língua suporta a cultura e esta é composta por um corpus de valores pelos quais nos interrogamos e identificamos com a realidade envolvente.

(Continua)



Seja o primeiro a comentar: