terça-feira, 28 de agosto de 2012

0

Leonardo Boff - A razão contra a Razão: eis nossa crise

Em momentos críticos da história, mais que os cientistas são os filósofos chamados a opinar. Numa famosa palestra na rádio bávara em maio de 1952 Martin Heidegger usou uma palavra escandalosa, mas que possui um sentido profundo:”A ciência não pensa; isso não é nenhum defeito mas uma vantagem”. A vantagem reside em apenas analisar  fatos, submetendo-os ao cálculo e tornando-os assim manipuláveis pela técnica. Escapa ao seu âmbito de interesse a interrogação sobre o sentido dos fatos e do curso da história. 
Se isso podia ser dito nos anos 50 do século passado, não poderá mais ser repetido no tempo presente. Pois a ciência se desenvolveu numa direção que põe em cheque o sentido da razão e o destino de nossa civilização. Ou a ciência será feita com consciência e então incorporará uma dimensão ética, ou ela nos poderá destruir a todos. É o que nos alertam grandes nomes do pensamento contemporâneo, não só da filosofia mas das ciências da Terra, da nova cosmologia e da biologia.
Permanece, no entanto, a indagação que é objeto da matutação filosófica: por que e como chegamos à atual situação?
Antes de mais nada, cabe identificar o equívoco que cometemos em nosso passado. Esse reside na ruptura ocorrida entre a  razão objetiva (ontológica) e a razão subjetiva. Quem o denunciou com grande acuidade  foram Martin Heidegger (“Que significa pensar”), Max Horkheimer (“Eclipse da razão”, 1946) e Theodor Adorno em parceria com Max Horkheimer (“A dialética do Iluminismo”,1947). Para os clássicos gregos, passando pelos medievais e culminando em Hegel, a razão objetiva constituía um princípio inerente à realidade;  mostrava o sentido latente das coisas e sua estrutura de inteligibilidade. A ênfase era dada mais aos fins que aos meios. Essa razão objetiva se refletia na razão subjetiva que ouvia atentamente as orientações da primeira. O ser humano, a sociedade e a história funcionam bem quando estas duas razões se articulavam e se harmonizavam.
A grande viragem ocorreu com a irrupção da razão moderna  no século 16. A partir de então é a razão subjetiva que predomina. É entendida como uma faculdade subjetiva da mente. Só um sujeito humano é portador exclusivo de razão; a Terra e a natureza são coisas, não possuem razão e um propósito racional. Por isso podem ser manipuladas à mercê dos propósitos humanos. O equilíbrio entre as duas razões se rompeu.
Como dizia Francis Bacon: “Saber é poder”. A razão subjetiva começará a ser o grande instrumento da vontade de poder, de conquista, de expansão e de subjugação do mundo. Lentamente se instaurou o império da razão instrumental-analítica, cuja função primordial é “compreender e modificar” a realidade (Koyré; Prigogine). E o fizemos nos últimos séculos com especial fúria. Não nos importavam as consequências sobre o equilíbrio a Terra e as devastações sistemáticas da natureza. Elas estão ai, exatamente, como campo de exercício para a nossa liberdade e  criatividade.
Eis que, de repente, a partir dos fins dos anos 60, nos demos conta de que este tipo de razão estava destruindo as bases que sustentam nossa vida e a natureza. As “externalidades” se tornaram tão graves que podem pôr em risco o futuro da espécie e de nossa civilização. Descobrimos que a Terra e natureza possuem a sua “razão intrínseca e a sua lógica” (Gaia). Negadas, podem nos destruir. Impõe-se um novo acordo entre as duas razões, um outro tipo de racionalidade que incorpore consciência, sensibilidade, cuidado e ética. Deve aprender a se autolimitar para não ser  destrutiva.
Temos que deixar para trás o pensamento único e ser multidimensionais. Bem nos recordava Fernando Pessoa (Álvaro Campos): ”Sou um técnico mas tenho a técnica só dentro da técnica”. Fora dela, podemos e devemos ser muitas outras coisas até para nos salvar.
 
 
Leonardo Boff, escritor, foi professor de filosofia e ética na Uerj. 
 
 
 

Seja o primeiro a comentar: