sábado, 1 de setembro de 2012

1

Dom Quixote contemporâneo


   Ele levanta acordado pelo despertador do celular. Corre contra o tempo para se arrumar e fica matutando como esticar o dia. Tanta coisa para fazer! Fica imaginando como transformar aquela peça de teatro em um sucesso nacional. Já está até vendo a cena: os anúncios na mídia, os outdoors espalhados pela cidade, as críticas favoráveis, o teatro lotado, o público aplaudindo de pé... E ele lá no meio, junto ao elenco... Bravo! Bravo!
   Lágrimas de alegria escorrem pela sua face, enquanto imagina a realização do seu sonho. Seu coração bate acelerado e ele mantém um sorriso de genuína alegria...
Enquanto dilui o café solúvel e mastiga um pão dormido com manteiga, ele abre rapidamente o notebook. Confere as principais manchetes, a previsão do tempo, os escândalos de Brasília, a cotação do dólar... Eita, mundo cão!...
   Olha um anúncio de brinquedos eletrônicos e lembra daquele roteiro infantil que criou 10 anos atrás, uma releitura erotizada dos personagens “Chapeuzinho Vermelho” e “Lobo Mau”, transformados em uma “Lolita” do século 21 e em uma espécie de “Dom Juan de Marco” à brasileira, à la Nelson Rodrigues... A vida como ela é... – Bando de provincianos! Não sabem o que é arte!
   Quase 10 horas! Desce as escadas correndo em direção ao portão. – Não posso me atrasar na entrevista com o tubarão! E se ele patrocinar o projeto? Amanhã mesmo vou poder reunir o elenco, retomar os ensaios, planejar a temporada, a turnê nacional...
   Na saída, vê a caixa de correio entupida de contas, contas e mais contas para pagar... E “santinhos” de políticos, que de santos não tem nada... - Haja estômago!, pensa em voz alta, fazendo uma careta.
   Ele apressa o passo. Chega suado e esbaforido até a antessala do diretor presidente. A secretária executiva o olha por baixo dos óculos e pede que espere até o final da reunião. E ele espera... 10, 15, 30 minutos, até que a porta se abre e os executivos deixam a sala do tubarão-todo-poderoso. – Pode entrar, diz a secretária. Finalmente o roteirista entra, segurando a pasta, frente a frente com o tubarão...
- Li atentamente o seu projeto. Bem interessante. Mas infelizmente já fechamos o orçamento deste ano. Decidimos associar a nossa marca a um cantor sertanejo que está bombando e vendendo que é uma beleza! Lamento. Fica para a próxima!
   Ao sair da empresa, ele decide que não vai desistir. Afinal, é o que sabe fazer e não está disposto a entregar os pontos. – Amanhã é outro dia! De algum lado o sol tem que sair!
E lá vai o heróico e idealista Dom Quixote contemporâneo, pronto para enfrentar seus moinhos de vento, mais uma vez...

Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e radicada em Jaraguá do Sul (SC), Brasil, desde 1996.

1 Comentário

andre albuquerque

Perseguir mesmo a quimera até o fim, um preço por sonhar.Bela narrativa.