quinta-feira, 20 de setembro de 2012

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Leonardo Boff - Que podemos esperar depois da Rio+20?

Tempos atrás publiquei neste espaço matéria semelhante a esta. Retomo-a agora, pois se tornou mais  atual do que antes,  após a Rio+20. O grande tema da Conferência da ONU era Que futuro queremos. O documento final, entretanto, não nos fornece o mapa nem os meios de percorrê-la. Ele é medroso, sem ambições e sem sentido ético e espiritual da história humana. Refém de uma visão reducionista e até materialista da economia, não forjou um novo e necessário software social e civilizacional que nos desse esperança de um futuro que não fosse simplesmente o prolongamento do passado e do presente. Este deu tudo o que tinha que dar. Levá-lo teimosamente avante é empurrar-nos para a borda de um abismo que se abre lá na frente, num tempo não muito distante.
Há um complexo de crises em curso, particularmente  a do aquecimento global, da insustentabilidade do planeta Terra e ultimamente da econômico-financeira, atingindo o coração dos países opulentos, sem saber como saírem dela. Há ainda o crescimento do número de pobres e miseráveis que em 2008 eram 860 milhões e que agora, devido à crise global, passaram a um bilhão e duzentos milhões. Muitos analistas desenham  cenários dramáticos para o próximo futuro da Terra e da Humanidade. Há uma guerra total, movida contra a Terra viva (Gaia) pelas elites mundiais e pelas megaempresas multilaterais, pela forma como produzem e acumulam, pondo em risco o  sistema-vida e o sistema-civilização. Há poucas chances para uma  paz duradoura e uma globalização solidária.
Tudo isso nos suscita uma angustiante pergunta: que virá depois da Rio+20? 
Façamos algumas constatações. Nos últimos anos, consolidou-se a aldeia global; ocupamos praticamente todo o espaço terrestre e exploramos a natureza até os confins da matéria e da vida, com a utilização da razão instrumental-analítica; ocorreu um processo de acumulação capitalista como nunca antes da história; um pequeno grupo de megaempresas controla grande parte da economia mundial e através dela a política e as informações. Estamos no coração de uma crise de civilização sem precedentes, dado o seu caráter global. 
Perguntamo-nos: e agora o que virá?  Mais do mesmo? Mas isso é muito arriscado, pois o paradigma atual está assentado sobre o poder como dominação da natureza e dos seres humanos. Não devemos esquecer que ele criou a máquina de morte, que pode destruir a todos nós e a vida de Gaia. As virtualidades construtivas deste caminho parecem ter-se esgotado, embora ele seja ainda dominante. 
Do capital material somos forçados  passar ao capital espiritual. O capital material tem limites e se exaure. O espiritual é infinito e inexaurível. Quanto mais se usa, mais cresce e se expande. O capital espiritual  é  feito de  amor, de compaixão, de cuidado, de criatividade, realidades intangíveis e valores infinitos. Este foi parcamente aproveitado por nós. Mas ele pode representar a grande alternativa que supera a crise atual e inaugura um novo patamar civilizatório. 
A centralidade do capital espiritual reside na vida, na Humanidade e na Terra viva. Busca criar as condições para as liberdades substantivas, como queria o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen (Desenvolvimento como liberdade), que permite às pessoas humanas moldarem sua vida e destino, realizarem sua autonomia  e viverem numa sociedade “menos malvada” (Paulo Freire), na qual seja menos difícil o amor, a compaixão, o cuidado para com a nossa Casa Comum, na alegria de viver e na capacidade de transcendência. 
Não significa que tenhamos que dispensar a tecnociência. Sem ela não atenderíamos às demandas humanas. Mas ela não seria mais destrutiva da natureza e da vida. Se no capital material a razão instrumental era seu motor, no capital espiritual é a razão cordial e sensível que organizará a vida social e a produção consoante os ciclos da natureza e dentro dos limites de cada ecossistema. Na razão cordial estão radicados os valores e os grandes ideais dos povos e de cada pessoa; dela se alimenta a vida espiritual, pois produz as obras do espírito que referimos acima: o amor, a solidariedade e a transcendência. 
Usando uma metáfora do grande escritor irlandês convertido C. S. Lewis diria: se no tempo dos dinossauros houvesse um observador hipotético que se perguntasse pelo próximo passo da evolução, provavelmente diria: o aparecimento de espécies de dinos ainda maiores e mais vorazes. Mas ele estaria enganado. Sequer imaginaria que de um pequeno mamífero que vivia na copa das árvores mais altas, alimentando-se de flores e de brotos e tremendo de medo de ser devorado pelos dinossauros, iria irromper, milhões de anos depois,  algo absolutamente impensado: um ser de consciência e de inteligência — o ser humano — com uma qualidade totalmente diferente daquela dos dinossauros. Não foi mais do mesmo. Foi uma ruptura. Foi um passo diferente. 
Cremos que o grande legado da crise global sob a qual padecemos seja a percepção de que o capital material não satisfaz os anseios fundamentais do ser humano. Este tem fome de quê, além da fome de pão sempre saciável? Tem fome de reconhecimento, de dignidade, de amar e de ser amado, de alegria de viver e de transcendência, fome que irrompe como insaciável e sempre presente em sua existência. Agora poderá surgir um ser humano marcado pelo inexaurível capital espiritual. Agora prevalece o mundo do ser mais que o mundo do ter. 
O próximo passo, então, seria exatamente este:  descobrir o capital espiritual e começar a organizar a vida, a produção, a sociedade e o cotidiano a partir dele. Então a economia estará a serviço da  vida, e a vida se imbuirá dos valores das relações abertas e inclusivas, da mutualidade ser humano-Terra, da autorrealização e da alegria —  uma verdadeira alternativa ao paradigma vigente.
Mas este passo, fundador do novo, não é mecânico. É resultado de uma coligação de forças ao redor de valores e princípios assumidos por todos, biocentrados e ecoamigáveis. Quer dizer, ele é oferecido à nossa liberdade. Podemos acolhê-lo como podemos também recusá-lo. Mas, mesmo recusado, ele permanece como uma possibilidade sempre presente e pronta a irromper.  Ele não se identifica com nenhuma religião. É algo anterior, que emerge das virtualidades daquela Energia de fundo, poderosa e amorosa, que sustenta todo o universo, a cada um de nós, e que penetra em toda a evolução consciente.     Quem o acolhe viverá outro sentido de vida,  vivenciará também um novo futuro, diferente daquele imaginado pela Rio+20. Os outros dentro do velho paradigma continuarão sofrendo os impasses do atual modo de ser e se perguntarão, angustiados, pelo seu futuro e até pelo eventual desaparecimento da espécie humana. 
Foi Pierre Teilhard de Chardin que, ainda nos anos 30 do século 20, teve o sonho da irrupção da noosferaNoos  em grego significa a mente e o espírito totalmente abertos e unidos. A noosfera  seria a irrupção da humanidade como espécie, da mente e do coração sincronizados e batendo em uníssono. Seria a etapa nova da antropogênese, a superação do antropoceno, a inauguração da era ecozoica  e uma idade também nova de Gaia. Uma utopia? Sim, mas uma utopia necessária para  dar rumo às nossas buscas e manter vivo um horizonte de esperança. 
Estimo que a atual crise mundial nos criou a possibilidade de realização da noosfera. Dizem por aí que Jesus,  Buda, Francisco de Assis, Rumi,  Gandhi, dom Hélder Câmara, irmã Dorothy e tantos outros mestres e testemunhas do passado e do presente teriam, antecipadamente, dado já esse passo. Eles são nossas estrelas-guia, os alimentadores de nosso princípio-esperança e a garantia de que ainda temos futuro. As dores atuais não seriam estertores de uma civilização moribunda mas os sinais de um parto  de um novo modo sustentável de viver e de habitar o nosso planeta Terra. Seremos humanos, reconciliados conosco mesmos, com a Mãe Terra e com a Última Realidade. Este parece ser o sentido do universo  e o propósito do Criador. 
Como disse sugestivamente uma de nossas melhores pensadoras dos novos paradigmas, Rose Marie Muraro: “Quando desistirmos de ser deuses, poderemos ser plenamente humanos, o que ainda não sabemos o que é, mas que já o tínhamos intuído desde sempre”.


*Leonardo Boff, teólogo e filosofo, é escritor e um dos redatores da Carta da Terra.


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