quarta-feira, 5 de setembro de 2012

0

O ANJO 18 - JANDIRA ZANCHI


O ANJO


18.

- Debato-me com o vento, discuto suas asserções, observo desconexões nas flexões de minha mente, essas luzes inacabadas, fluorescências de ambigüidades. Depois, novamente, ouço o pássaro. Todas as tardes, naquele princípio de despedida para chegar à fresca noite, reúne-se com outros e canta de maneira tão desabrida, que envergonho-me e ponho-me em genuflexão. Porém, Ângelo, amigo, que mar é esse que se perde e angustia e depois se detém perfeito na forma, no aquário amplo e sintonizado de seres e árvores, solícito, adequado em cada vibração?
- Eu diria que é o milagre. A perfeição resumida no instante e no infinito, fração e totalidade. Talvez ela se encontre em todas as frentes e só, vez ou outra, permita-se assim, vestir de gala em local adequado, afinada e perseverante.
- Você o faz parecer tão simples.
- Permeio pela beleza e não pela manobra da dialética e da discórdia. Assim, sem ambições, posso perfumar-me, às vezes, do infinito.
- Narciso se julga simples, humilde...
- Aquele que se espelha nos bens e seu movimento com certeza é humilde.
- E assume-se em resumir-se como apenas mais um.
- Não almejo o infinito e até mesmo duvido dele. Também não quero a espiral do movimento galáctico girando em meus braços. Gosto de entornar-me no cálice amarelo das estrelas, mas, mergulho no oceano em que nado.
- Ser limitado é uma exigência de perfeição.
- Assumir uma forma, uma função e deixar que de suas bordas vazem a religião e o cálice.
- Ah, como percebo, e como não aceito tanta fatalidade...
- Assim, amiga, ficas à deriva. Procura te aquietar para que o excesso de angústia e desejo não se instale com seu frêmito pulsante.
- Bem o sei, bem o sei. Mas, transbordo-me nos perfumes e na longitude da terra quando se enfeita com o vigor da primavera, menina febril de cigarras e aves, flores e reminiscências... então quero voar, ultrapassar o ar, conhecer o cosmo inviolável, falar todos os dialetos, prometer felicidade e bonança para todos os seres e partículas. Nesse nosso mundo explode um calor prensado de larva e dor, consciência e inconsciência de luta, de fome, de horror! Esse deus nunca vai conseguir entoar um hino harmônico?
- A formatação e ascendência do deus são grandes demais para você e para qualquer um. Mais do que querer é preciso aprender. Desejar uma planificação de harmonia é de bom tom, pois se quer pertinente a oração e divina a complexidade. Outros surgiram talvez menos santos, ou mais, ou ameaçados em sua trindade. O geral será verificado em sua amplitude, mas guardara segredo. Muitos bilhões de espaço/tempo nos separam de tantos mistérios. Não faz diferença. Recria-se todo o macro em uma fatia do universo, no perfume da noite que chega, na alegria e faceirice da primeira estrela, ainda duvida?
- Não, e sempre temo pecar por excesso de impertinência. Mas está em mim.
- Está em nossa mente. A vazão para o horizonte quando a natureza se torna um lar não é contradição, é o princípio da religião. É o que une o que não se visualiza, nem se toca, o que torna o céu um alcance para tua mão e afasta para muito longe a sombra da morte, essa funesta mendiga que atravessa o túnel despida de ar e conclusão.
- E saberemos?
- Sim, um dia saberemos, o mistério se descerra quando chega o momento. Alguns segredos se preservarão, muitos movimentos não se deixarão penetrar. Se o nosso amadurecer deve se dar em meio à tantas provações e limitações precisamos nos adaptar, nos adequar ao tempo, espaço e visibilidade que nos é oferecido.
- Amém, ou talvez, cruz credo?
- Amém, Ariane, amém. Ouça o pássaro.

Seja o primeiro a comentar: