quarta-feira, 26 de setembro de 2012

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O ANJO 21 - JANDIRA ZANCHI




O ANJO

21.

- Terminamos? – ele sorriu.
- Sim!
-Então sabemos. Conhecemos nossas fronteiras e desejos, opróbrios e medos.
- O milagre intocável em sua pureza, quase não é crível que em torno da clareira possa ter havido debates, equívocos, seres enfiando-se em túneis e pontes sem viço.
- Os pássaros ainda gorjeiam, nunca deixaram de fazê-lo.
- Em alguns fins de tarde de muito sol e alegria ali estão, ingênuos, profundos, para além da metafísica barata dos maus instintos, em hino de fé e desprendimento.
- Acompanhemo-los.
- Vão levar-nos até o alto daquele penhasco... se voasse...
- Esqueceu-se?
- Esse furor no alto do estomago entorpeceu-me. Vícios de lógicas, intestinos de um bom senso arcaico e vazio tiraram-me a Ave e sua métrica essa ligeireza prima e primada de si. Por algum motivo e de preferência em algumas horas encontra-se aquele que é dito como o divino, divagado, ascendido, acionado, um fluir de paz, a água leve levando na areia uma espuma sem vingança. Simplesmente manifesta-se e abre a alma para todos os que se afinam com a orquestra.
- Então, minha Ariane, tira esse capuz e a manta negra de muitas léguas e solidão, afaste-se do purgatório das grandes naves das igrejas medievais e corra pelo átrio, tão belo, sereno dos passos dos bons monges, rodeado da penugem branca das flores. E promete-se, enamora-se, conversa com alguma criança, cumprimenta um aldeão. A taça de vinho vai ser te oferecida pela filha e da mão do marido receberás o pão. O canto dos Anjos levará ao cume, para estrelas de longas viagens e infinitas tentativas, madrigais de luz.
- Sentar-me-ei com os Anjos ao cantar da sombra da noite. Serei a primeira a acenar para a primeira estrela e a decorar todas as outras. O cheiro do mato vai invadir-me enquanto silencia o pássaro, que emudece para gorjear sua algazarra o coro celeste. A terra, bem sei, vai me ouvir em sua boa mansidão, aconselhar-me dois ou três segredos, oferecer seu pasto branco.  O princípio estará tonificado no fim e esse não se medirá pelo tempo de nenhum ser ou coisa. Apenas seguirá já que tece seu arco em torno de uma flecha. Fincados em um espaço, abriremos o sulco de nossas gargantas para retermos o ar e a admiração. Lentamente, como fontes vermelhas e seguras de luz, apagaremos, imersos em outro sonho. Sem vontade e voluntariosos no espaço bendito, aberto para nós.

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