terça-feira, 16 de dezembro de 2014

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RESENHA SOBRE A NOVELA "FÔLEGO", DE RAFAEL MENDES

Esqueça: remoer o passado é forçar o sabor de lembranças amargas. (pg14)

Em sua primeira narrativa longa, Rafael Mendes nos ensina que a boa literatura é aquela que pode ser sentida e não apenas lida com indiferença, aliás, está aí a diferença entre a arte e o produto, pois nela as palavras se tornam antenas aptas a captar as sensações e sentimentos das personagens, que como qualquer ser-vivo respira e inspira, buscando dentro de si o Fôlego necessário para seguir adiante.
A estrutura do texto entrelaça e-mails enviados por Matheus e Manuela para Pedro, o irmão que de certa maneira é a personificação do silêncio dentro da obra, pois este apenas ocupa o lugar de receptor, não pronuncia nem uma palavra ao longo das páginas. A outra parte dos acontecimentos fica a cargo de Matheus encarnando o papel de narrador-personagem que por meio de seu relato remonta a história de sua família desde antes da sua concepção, aí está aplicado o recurso da metalinguagem, muito bem estruturado por Rafael na costura de seu texto.
Na gaveta do criado-mudo, em meio a remédios e rascunhos, guardo uma foto antiga. Nela, eu estou emburrado, descalço e segurando um carrinho. (Pg13) O objeto que liga Matheus ao seu passado é a fotografia que ele descreve no início do texto, na esfera externa da obra Rafael ao enfatizar as descrições que aqui vão pra além daquelas comuns ao Realismo, utiliza técnicas da fotografia na arte literária para elevar a expressividade de seu protagonista. Talvez para ampliar a possibilidade de leitura, o conceito de punctum concebido por Roland Barthes para compreender a arte da fotografia, nos ajude, pois no início do livro, a imagem carrega a percepção da personagem para além do que mostra, está contaminada de recordações ali invisíveis, mas ainda assim passiveis de serem contempladas pelas emoções de seu observador.
Embora o escritor envolva o leitor, ele não o subestima, pois há lacunas que assim como escreveu na primeira metade do século passado o filósofo Walter Benjamin, destroem a fictícia linha existente entre escritor e leitor exigindo aí uma parceria para que a obra exista para além do objeto físico livro, como num episódio entre o pai e a irmã Manuela: Sai de perto de mim, sai de cima. Meu pai gesticulava com os braços, pedindo que minha irmã se acalmasse... (pg. 50)
O espaço dentro da obra não é figurativo, é também um personagem importante no desenrolar da trama, é a projeção do ser que ali o contamina com sentimentos de inadequação: O quintal, assim como a casa, tinha ficado pequeno para mim. (pg.58)
Além do diploma pendurado na parede do meu escritório, do apartamento espaçoso e da família formada, o que mais me constitui como “alguém”? (pg.63)
Jaime o pai que serve de motor para unir a família apenas em torno de desconfortos existenciais, mesmo após sua morte, tem em sua profissão uma espécie de metonímia do seu papel de algoz da tranquilidade familiar: Para mim, meu pai já nasceu encanador. Já nasceu com as mãos sujas, com o macacão fedorento, carregando aquela caixa de ferramentas pesadas. (pg.32)
Rafael Mendes não é um daqueles escritores que se cercou de livros e teorias esquecendo de olhar atentamente para o mundo em que vive. Em seu livro há temas do nosso tempo tais como o crescimento do protestantismo nas periferias de São Paulo, conflitos familiares por conta da sexualidade de um de seus membros, o imigrante desprendido de suas raízes que vem tentar a vida na selva paulista, a falta de planejamento familiar e a baixa-estima daqueles que não puderam frequentar a escola. Mas tudo sem soar panfletário, a serviço da narrativa, cabendo na boca das personagens, longe daquilo que já foi chamado de Romance de tese.
Mesmo tendo publicado apenas dois livros, o tema do autor é o tempo, não o cronológico, mas aquele do qual fala o filósofo Jacob Needleman: O tempo do coração não se move, repete-se indefinidamente em ciclos como um grito ou uma risada ecoando na noite ou no dia sem fim.
A asma de Matheus não é só um problema de saúde, assim como o problema no fígado do protagonista de Memórias do Subsolo e a metamorfose de Gregor Samsa, é o símbolo da inadequação de um homem que tenta caber na sociedade, mas por mais que ali esteja aparentemente inserido, se sente distante, como numa crise o fôlego ausente personificasse a incapacidade de um próximo passo, mesmo que este fosse rumo ao nada.

1 Comentário

Marcia Barbieri

Parabéns, Fernando, pela resenha e parabéns, Rafael, pelo livro!