Esqueça: remoer o passado é forçar o sabor de lembranças amargas. (pg14)
Em sua primeira narrativa longa, Rafael Mendes nos ensina que a boa literatura
é aquela que pode ser sentida e não apenas lida com indiferença, aliás, está aí
a diferença entre a arte e o produto, pois nela as palavras se tornam antenas
aptas a captar as sensações e sentimentos das personagens, que como qualquer
ser-vivo respira e inspira, buscando dentro de si o Fôlego necessário para
seguir adiante.
A estrutura do texto entrelaça e-mails
enviados por Matheus e Manuela para Pedro, o irmão que de certa maneira é a
personificação do silêncio dentro da obra, pois este apenas ocupa o lugar de
receptor, não pronuncia nem uma palavra ao longo das páginas. A outra parte dos
acontecimentos fica a cargo de Matheus encarnando o papel de
narrador-personagem que por meio de seu relato remonta a história de sua família
desde antes da sua concepção, aí está aplicado o recurso da metalinguagem,
muito bem estruturado por Rafael na costura de seu texto.
Na gaveta do criado-mudo, em meio a remédios e rascunhos, guardo uma foto
antiga. Nela, eu estou emburrado, descalço e segurando um carrinho. (Pg13) O objeto que liga Matheus ao seu
passado é a fotografia que ele descreve no início do texto, na esfera externa
da obra Rafael ao enfatizar as descrições que aqui vão pra além daquelas comuns
ao Realismo, utiliza técnicas da fotografia na arte literária para elevar a
expressividade de seu protagonista. Talvez para ampliar a possibilidade de
leitura, o conceito de punctum
concebido por Roland Barthes para compreender a arte da fotografia, nos ajude,
pois no início do livro, a imagem carrega a percepção da personagem para além
do que mostra, está contaminada de recordações ali invisíveis, mas ainda assim
passiveis de serem contempladas pelas emoções de seu observador.
Embora o escritor envolva o leitor,
ele não o subestima, pois há lacunas que assim como escreveu na primeira metade
do século passado o filósofo Walter Benjamin, destroem a fictícia linha
existente entre escritor e leitor exigindo aí uma parceria para que a obra
exista para além do objeto físico livro, como num episódio entre o pai e a irmã
Manuela: Sai de perto de mim, sai de cima.
Meu pai gesticulava com os braços, pedindo que minha irmã se acalmasse...
(pg. 50)
O espaço dentro da obra não é
figurativo, é também um personagem importante no desenrolar da trama, é a
projeção do ser que ali o contamina com sentimentos de inadequação: O quintal, assim como a casa, tinha ficado
pequeno para mim. (pg.58)
Além do diploma pendurado na parede do meu escritório, do apartamento
espaçoso e da família formada, o que mais me constitui como “alguém”? (pg.63)
Jaime o pai que serve de motor para
unir a família apenas em torno de desconfortos existenciais, mesmo após sua
morte, tem em sua profissão uma espécie de metonímia do seu papel de algoz da
tranquilidade familiar: Para mim, meu pai
já nasceu encanador. Já nasceu com as mãos sujas, com o macacão fedorento,
carregando aquela caixa de ferramentas pesadas. (pg.32)
Rafael Mendes não é um daqueles
escritores que se cercou de livros e teorias esquecendo de olhar atentamente
para o mundo em que vive. Em seu livro há temas do nosso tempo tais como o
crescimento do protestantismo nas periferias de São Paulo, conflitos familiares
por conta da sexualidade de um de seus membros, o imigrante desprendido de suas
raízes que vem tentar a vida na selva paulista, a falta de planejamento
familiar e a baixa-estima daqueles que não puderam frequentar a escola. Mas
tudo sem soar panfletário, a serviço da narrativa, cabendo na boca das
personagens, longe daquilo que já foi chamado de Romance de tese.
Mesmo tendo publicado apenas dois
livros, o tema do autor é o tempo, não o cronológico, mas aquele do qual fala o
filósofo Jacob Needleman: O tempo do
coração não se move, repete-se indefinidamente em ciclos como um grito ou uma
risada ecoando na noite ou no dia sem fim.
A asma de Matheus não é só um
problema de saúde, assim como o problema no fígado do protagonista de Memórias do Subsolo e a metamorfose de
Gregor Samsa, é o símbolo da inadequação de um homem que tenta caber na
sociedade, mas por mais que ali esteja aparentemente inserido, se sente
distante, como numa crise o fôlego ausente personificasse a incapacidade de um
próximo passo, mesmo que este fosse rumo ao nada.
1 Comentário
Parabéns, Fernando, pela resenha e parabéns, Rafael, pelo livro!
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