O
nome primeiro deste livro foi “Afeto sem o Filtro da Linguagem”. Título
apontado pelo editor como longo e sentido por mim, uma das primeiras leitoras,
como desconfortável. O que é tão importante em afetos, que não se deva passar
pelo crivo da linguagem? Então o “filtro da linguagem” desmerece ou enfraquece
o afeto? E, procurando na filologia uma definição pura da palavra afeto:
Afeto
– do latim AFFECTUS: disposto,
inclinado a; particípio passado de AFFICERE:
fazer algo a alguém, usar, manejar, influir sobre. Forma-se de Ad-, a, mais Facere, fazer.
A
ideia mais forte é a de um ato, um fazer, uma força e uma ação estão embutidas
em afeto. Muitas palavras fazem o ato perder a força. Por isso usar a mesma
linguagem para explicar a vontade de impossivelmente prescindir da linguagem. A
linguagem explica coisas para nós mesmos, pois pensamos sobre e sabemos o mundo
por meio de palavras, que falam conosco em nossa mente.
O
autor do livro reconhece e entende as marcas da história e a força dessa
palavra. Assim como a etimologia me deu pistas do meu incômodo com título
longo. Mesmo sem fuga completa do código linguístico, o encurtamento do título
nos põe diante do ímpeto desta palavra. Quanto menos é mais evidente a veemência
da raiz facere, que sobrevive na letra “f” de afeto. Ele quis enfatizar algo
presente antes da linguagem no ato de afeto.
Sugeri
o plural da palavra por entender que as potências e as forças que nos marcam a
vida são diversas. Existem diferentes qualidades e intensidades de afeto. Parar
e pensar no significado da palavra me levou a associar ações a esse sentimento.
Em afeto não cabem tantas idealizações como na palavra “amor”, por exemplo. Nós
perdemos o imediato da ação que está escondido em afeto. No cotidiano nos
referimos à palavra como um sentimento abstrato, de aspecto idílico, talvez na
mesma seara de vocábulos como romance, pureza, benquerença ou ternura. Porém,
ele guarda ação em seu gene e se liga a imagens de carinho, fazer carinho. Como
se demonstram os afetos? Fazendo algo para agradar como o clássico doce da
canção de Chico Buarque: “Com açúcar, com afeto fiz seu doce predileto”. Afeto
é tempero qual açúcar, é o próprio ato de feitura do doce.
Triste
para nós é termos trancado os sentidos de afetação e afetado em conceitos
negativos. É impossível na linguagem corrente concordar que haja vantagens nas
afetações ou em ser afetado. Mas a etimologia guarda o ato de fazer e, para
lembrarmos desse lado, precisaríamos pensar em feitura, afetação, afeto
positivos ou negativos, quando as usássemos.
Existe
um fazer que parte de alguém e colide com, envolve, perpassa outro alguém, e
isso deixará consequências em ambos. É uma experiência que produzirá imagens em
todos. Nós vivemos à procura dessas experiências, buscamos marcas para a
vida. Vivemos sob as forças produzidas
por tais encontros e causamos força e encontros em outros entes. Na filosofia
de Baruch de Espinosa o afeto é o cerne da própria vida. É força motriz das
histórias humanas.
Não
existe experiência no Mundo, que não possa ser sentida. Por isso, o humano é
razão e emoção. Toda ação, produz algum tipo de movimento, de impacto ou marca
nos sujeitos participantes. Sejam agentes ou pacientes. Por isso não se deve
olhar estanque para as relações, procurando sujeito e objeto. As experiências
produzem imagens, que serão lembradas pelos atores da experiência, daí temos o
conceito de afecção. É a lembrança, a recordação da experiência, que traz a
racionalização e a sensação. E, por fim, existe o afeto que, para Espinosa, é
um esforço para aumentar a nossa abrangência e potência de agir no Mundo. Eis a
nossa busca, porém há afetos que diminuem nossa ação frente ao mundo.
Se
as histórias dos livros contam tragédias familiares, torturas psicológicas
impostas a si mesmo por pensamentos viciantes, que produzem assassinos ou memórias
de tempos tidos sempre como melhores do que o agora, elas contam trajetórias de
afetos neste mundo percebido e representado pela espécie humana. A Literatura é
a história dos afetos, entendidos como a perseverança de nossa vivência no
mundo.
Este
livro passeia pelas várias maneiras de salvação do regular existir no Mundo,
que são, na filosofia espinosana a persistência e perseverança em
permanecermos. Regular porque me refiro ao viver natural e biológico,
circunstanciado histórico e culturalmente, sem rompantes de heroísmos e
maravilhas, como pode querer sugerir, nos últimos tempos, a palavra ‘salvação’.
Ela equivale mais à sustentação do existir, como os personagens se compõem e se
agenciam em inter-relações, a fim de se apresentarem mais fortes para a
existência e outras interações futuras.
O
tempo é absoluto nessas inter-relações e, como o autor bem chamou, “Os Dentes
de Cronos” ferem toda carne vivente. Ele mostra sua relatividade ligada ao
espaço, como em PASSA QUATRO, onde há modus
operandi mais tranquilo, com participantes marcantes para quem sai da
metrópole, como maria-fumaça, cegos tocadores de sanfona, violeiros, bois,
vacas e montanhas. Essa crônica que abre o capítulo determina os afetos que
sobrevêm quando vivenciamos espaços distintos (MÁQUINA DE ESCREVER ESCRITORES).
Do ponto A ao B. As incisões ou arranhões que as viagens abrem para pensarmos
nosso espaço mais rotineiro e comum, nossa casa, nosso trabalho. Os sentimentos
voltam potencializados, como evidenciam DEDALEIRA, ABERTURA DO OLHAR, PÉ DE
PÁSSAROS e ORDINÁRIO ESPECIAL.
A
razão não é opositora da experiência afetiva, pois pensar se produz pela
racionalidade e produz sensações, assim como o ato de
imaginar, de relembrar. Somos racionais e imaginativos e COISAS DE CRIANÇA
trazem o momento em que o narrador quer contar algum ponto das biografias: de
netos e avós: AS DUAS PONTAS e FLORESCER; de uma menina cuja descoberta da dor
traz tristeza profunda: A VISÃO DE ANA; de patos se metamorfoseando em
isolamento e morte: FÁBULA DRAMÁTICA e de formandos: DEPEDIDA. Em todas as
crônicas o narrador se encontra à frente no tempo de um acontecimento e
vasculha o tempo anterior. Esse tempo localizou um fato ou o início de ação que
trouxe os personagens até o instante narrativo. Experiências afetivas incidiram,
tocaram-nos dali por diante, seja o avô cuidado tomando sol no quintal, a morte
da avó, o vídeo da morte de um cachorrinho, o endurecimento das penas ou a
proximidade de uma formatura.
A
vida está circunstanciada pela pós-modernidade, um momento de diversificação e
divulgação de todo tipo de experiências, em detrimento das tais instituições
antigas, como tempo, casamento, família, religião, cultura, educação, estética
etc. Na verdade, é plena a multiplicação de afecções e, por conseguinte, de
afetos. Todos, na sociedade de relações, inter-relações voláteis, veem-se
estimulados a tantas experiências e, ao mesmo tempo, perdidos em meio a tantas consequências
e sensações de suas experiências e do movimento potencial que elas produzem ou
podem produzir. Os entes, os participantes sempre fomos “ilhas”, a princípio
existe a delimitação e a fronteira do corpo. Vejo, ouço, sinto, movimento-me e
penso em turbilhões de imagens de aparelhos eletrônicos e tecnológicos
portáteis, acessíveis a quase todos pelas lógicas de mercado. As pessoas se
afetam com/em experiências de um tempo simultâneo, virtual, sem distâncias; em
destituição das conhecidas relações com as instituições. Exemplo de
inter-relação ruim é como a pós-modernidade lida com os que formaram muitas
afecções no mundo moderno, digamos até a década de 1980. Uma pessoa de 70 ou 75
anos, em 2016, pode adentrar nos bancos e descobrir que não há ajudantes para ajudá-los
no caixa de autoatendimento, “os jovens de colete com logotipo do banco”.
Afinal, se a agência está disponível em programas para celulares espertos
(smartphones), como considerar e lidar com a ideia, com a instituição “Velhice
ou Senilidade”? As Províncias Flutuantes somos nós envolvidos pela presença
difusa e propalada de imagens das telas led,
amoled, LCD, toutchscreen. Sejamos
preparados ou não, pois também contemplam quem não lida com elas: contemplam
com a rejeição e um certo banimento. Os
conflitos destes afetos banalizados, produzidos a qualquer hora e lugar, povoam
as Províncias. A, ainda, intransigente relação com a instituição Morte, na
organização Família é contundente em ÁRVORE ADMIRADA, CORREDOR HOSPITALAR e LIBERTAR
O CORPO, por exemplo. Vivências da instituição família atingida pelas feições
da morte seja pela proximidade e possibilidade, como na velhice, estão na melancolia
de AS LARANJAS; ou na desolação da vida sufocada e abafada por outras
urgências, mas que, ainda sendo aceita, não acontece, não vigora como sentimos
em LEITE MATERNO.
Os
afetos são os atos e as providências cujas consequências são nossas sensações,
prazerosas ou não. As motivações são multiplicadas, diversas e incompreendidas.
Pois, considerando-se o volume da vida virtual, o tempo para entender é
obsoleto. O capítulo IV são os diálogos afetivos entrelaçados em algum momento entre
Fernando Rocha e os personagens, entes, protagonistas da cultura, que, também
respondendo a experiências de seus contatos com o próprio tempo lançaram
músicas, livros, estilos e personalidades na Babel que é o Mundo Líquido, ou
seja, o que substitui as antigas instituições, que vestiam a fantasia de
imutáveis, de perenes. Nós, os viventes
deste ‘agora’, damos quais respostas a este mundo sem eternidade? As guitarras
de Jeff Buckley e Tom Yorke ou as composições de Nick Drake talvez tragam
alguma resposta rápida ou paixões condensadas.... Quem sabe alguma certeza
perene nas imagens do Ninil e a bela Cristina? Tudo afeto. As músicas, as fotos
e as respostas ditas aqui, com suas imagens, concretizadas nestas crônicas
poéticas. Bons encontros e diálogos do
autor com a cultura, já que se firma o pacto de SEMPRE EM FRENTE, mesmo com
sensações de vazio ou falta de sentido.
O
capítulo V traz a última resposta deste livro: os afetos são as agitações de
nossa consciência, que, advindos de motivações favoráveis, potencializam nosso
corpo para adentrarmos mais um passo na instituição Devir ou Futuro. É mais um
passo, todos os dias. Assim permanecemos e findamos, mas a ANUNCIAÇÃO, que
nomeia o capítulo é a de que percebamos o caminho, o trajeto e os tais afetos,
potencializadores de nós mesmos em algum momento.
Otacília Andrea Sales
2 comentários
um tremendo estudo da Otacília. Inteligente, sensível!
A gente ainda reclama, Daniel, mas são atos de afeto como este que fazem os caminhos tortuosos da literatura valerem a pena.
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