sexta-feira, 21 de abril de 2017

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ANTES DO PARTO



Eva, este nome que minha mãe me deu é tão estranho, ainda me lembro daquelas piadinhas sem graça da época de escola:
- Cadê o seu Adão, Eva?
- Não vai sair peladona por aí!
Quando a gente ouve algo na tevê parece que não é verdade, mas a tal crise me parece real agora. Ontem, fui demitida, todo aquele papinho de corte de gastos na empresa por parte do patrão é balela, os filhos dele continuam estudando fora do país, quando a esposa passava pelo escritório, sempre estava com sacolas de lojas caras, corte de gastos, bem sei...
Vou voltar a fazer pães de mel por enquanto, ao menos entra uma graninha extra, nunca sei quando Pedro vai atrasar a pensão dos meninos, não sei como pode sair por aí, parar numa padaria, tomar uma cerveja comer um lanche e por nenhum segundo pensar se os filhos têm algo para comer. Da última vez que veio aqui, ainda mandou aquele papinho de matar a saudade. Saudades do quê, cara pálida? Daquela cueca caprichosamente manchada com uma gota de urina, da afobação seguida de ejaculação precoce, do hálito de cachaça. O amor, ah o amor, droga que deixa a gente mais zumbi do que aquele pessoal da Cracolândia!
Há um tempo não me olho no espelho, ando fugindo dos olhos que vejo no meu rosto lá dentro, eles me assustam, me fazem lembrar de que o tempo passou como um caminhão, eu era a passageira que não percebeu o abrir da porta e acabou arrastada até aqui, este lugar que chamam de presente, não sei quem foi que deu, mas pode pegar de volta, nem vou dizer muito obrigado.
Ainda bem que hoje minha mãe foi pegar os meninos na escola, ela quer ficar a tarde inteira com eles, preencher o tempo e o silêncio da vida, depois que meu pai morreu, ela ficou ilhada num sem saber o que fazer com si mesma.
Acho que vou tomar uma cerveja, saio um pouco de mim, quem sabe esqueço o endereço e nunca mais volto. O vizinho da frente me olha, estou quase certa de que me deseja, ando com uma vontade de me sentir viva: mulher. Mas é melhor me controlar, ele é meio garotão, deve ser um boca aberta que eleva os fatos ao cubo para depois compartilhar as aventuras com outros mentirosos.
Me deu vontade de tomar um banho, está quente hoje, até parece um dia de verão, este outono e suas folhas, pareço aquele tal de Sísifo, as vezes a vassoura é tão pesada quanto uma rocha. Lembrei da minha infância, as mãos da minha mãe correndo levemente, pelos meus cabelos, uma sensação de carinho e cuidado que nunca mais obtive, apenas uma simulação que tinha como alvo certo a cama dos pais do Davi, que se fingiu de carinhoso, me chamou para ouvir música, bebemos um vinho que tinha por lá, ele com 19, eu com 15. Depois de um mês, ele disse que eu tinha entendido errado, que nunca tínhamos namorado, era apenas um lance.
O espelho embaçado pelo vapor do chuveiro, minhas mãos molhadas, sobre os olhos ainda resta espuma de xampu, com movimentos circulares abro caminho, espirais, dentro do último círculo esculpido pela minha mão esquerda encontro meus olhos, parecem independentes do resto do rosto. Será que foram estes mesmos olhos que se alegraram quando enxergaram nos meninos a recompensa das dores de antes do parto?  


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