quinta-feira, 20 de julho de 2017

0

v1v3nd0 3 n40 4pr3nd3nd0

    
Quatro trechos de ‘Admirável Mundo Novo’, de Aldous Huxley. A novela, publicada originalmente em 1932, denuncia os aspectos desumanizadores do “progresso” científico e material. (E ainda não aprendemos, não é?)
   
#    #    #
   
‘Uma nova teoria biológica’ era o título do trabalho que Mustafá Mond acabava de ler. Ficou sentado por algum tempo, as sobrancelhas franzidas meditativamente; depois tomou a pena e escreveu sobre a página de rosto: “A maneira pela qual o autor trata matematicamente a concepção de finalidade é nova e extremamente engenhosa, mas herética e, no que diz respeito à ordem social presente, perigosa e potencialmente subversiva. ‘Não publicar’.” Sublinhou essas palavras. “O autor será mantido sob vigilância especial. Sua transferência para o Posto de Vigilância Marinha de Santa Helena poderá tornar-se necessária.” Uma lástima, pensou, enquanto assinava. Era um trabalho magistral. Mas se se começasse a admitir explicações de ordem finalística... bem, não se sabia qual poderia ser o resultado. Era o tipo de ideia que poderia facilmente descondicionar os espíritos menos estáveis das castas superiores – que poderia fazê-lo perder a fé na felicidade como Soberano Bem e levá-los a crer, ao invés disso, que o objetivo estava em alguma parte além e fora da esfera humana presente; que a finalidade da vida não era a manutenção do bem estar, e sim uma certa intensificação, um certo refinamento da consciência, uma ampliação do saber... O que, refletiu o Administrador, bem podia ser verdade. Mas inadmissível nas circunstâncias presentes. Retornou a pena e, sob as palavras ‘Não publicar’, riscou um segundo traço, mais espesso, mais grosso que o primeiro; depois suspirou. “Como seria divertido”, pensou, “se não tivesse de pensar na felicidade!”
   
#    #    #
   
Uma das principais funções de um amigo é suportar (sob forma atenuada e simbólica) os castigos que nós gostaríamos, mas não temos possibilidade, de infligir aos nossos inimigos.
   
#    #    #
   
– Por que não lhes faz ver ‘Otelo’?
– Já lhe disse: é antigo. Além disso, não o compreenderiam.
Sim, era verdade. Ele lembrou-se como Helmoltz rira de ‘Romeu e Julieta’.
– Pois, então – disse, após um silêncio –, algo novo que seja como ‘Otelo’ e que eles possam compreender.
– É o que todos nós temos desejado escrever – declarou Helmholtz, rompendo seu prolongado silêncio.
– E o que o senhor nunca há de escrever – respondeu o Administrador. – Porque, se se parecesse realmente com ‘Otelo’, ninguém poderia compreendê-lo, por mais novo que fosse. E, se fosse novo, não poderia de maneira alguma ser parecido com ‘Otelo’.
– Por que não?
– Sim, por que não? – repetiu Helmholtz. Ele também esquecera as realidades desagradáveis da situação. Verde de ansiedade e temor. Bernard era o único que se lembrava; os outros não lhe deram atenção. – Por que não?
– Porque o nosso mundo não é o mesmo mundo de ‘Otelo’. Não se pode fazer um calhambeque sem aço, e não se pode fazer uma tragédia sem instabilidade social. O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes, por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E, se por acaso, alguma coisa andar mal, tem o ‘soma’. Que o senhor atira pela janela em nome da liberdade, Sr. Selvagem. Da liberdade! – Riu. – Espera que os Deltas saibam o que é a liberdade! E agora quer que eles compreendam ‘Otelo’! Meu caro jovem!
O Selvagem calou-se um momento.
– Apesar de tudo – insistiu obstinadamente –, ‘Otelo’ é bom. ‘Otelo’ é melhor do que estes filmes sensíveis.
– Sem dúvida – aquiesceu o Administrador – mas esse é o preço que temos de pagar pela estabilidade. É preciso escolher entre a felicidade e aquilo que antigamente se chamava a grande arte. Nós sacrificamos a grande arte. Temos, em seu lugar, os filmes sensíveis e o órgão de perfumes.
– Mas eles não significam nada.
– Significam o que são; representam para os expectadores uma porção de sensações agradáveis.
– É que eles são... são narrados por um idiota.
O Administrador pôs-se a rir.
– O senhor não está sendo muito cortês com seu amigo, o Sr. Watson. Um dos nossos mais notáveis engenheiros em Emoção...
   
#    #    #
   
– Mas como são úteis! Estou vendo que o senhor não gosta dos nossos Grupos Bokanovsky; mas, asseguro-lhe, eles são o alicerce sobre o qual está edificado tudo o mais. São o giroscópio que estabiliza o avião-foguete do Estado na sua rota imutável. – A voz profunda vibrava, emocionante; a mão, gesticulando, representava todo o espaço e o impulso da máquina irresistível. A oratória de Mustafá Mond achava-se quase à altura dos modelos sintéticos.
   
   
   
    

Seja o primeiro a comentar: