terça-feira, 15 de agosto de 2017

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ENTREVISTA COM JOÃO CAETANO DO NASCIMENTO



João Caetano do Nascimento é poeta, jornalista de formação e atuação profissional, trabalha há muitos anos na imprensa sindical. Após anos de criação literária, em abril, ele lançou seu primeiro romance: O rio de todas as nossas dores, sobre o qual conversamos.


João, para aqueles que acompanham sua criação artística por meio de sua atuação desde a década de 70 no MPA ou atualmente por meio de seu perfil no facebook, fica uma questão: Por que um poeta tem como livro de estreia um romance?
Na verdade, eu não me considero poeta. Cometo alguns poemas, digamos assim. Poucos sabem, mas sempre me dediquei mais à prosa, mais especificamente, o romance é o terreno em que trilho com mais familiaridade. Este é o meu terceiro romance. Um anterior chegou a ficar entre os finalistas do Prêmio SESC de Literatura Náufrago Noturno, mas como eu considerava uma experiência de linguagem, resolvi não torna-lo público.

No início do primeiro capítulo de O Rio de todas as nossas dores parece haver sobre as mãos do romancista, a mão do jornalista, há uma espécie de lide. Em que medida o jornalista colaborou com a criação desta obra?
Realmente, minha ideia era dar um início quase jornalístico e, à medida que fosse avançando a narrativa desse capítulo, eu mudaria o foco para a primeira pessoa, que é o que eu fiz, como para lembrar que a narrativa sempre traz consigo um olhar particular e uma interpretação própria dos fatos. Ela não é isenta. Todos nós temos lados, visões de mundo, presentes na forma com que vemos e relatamos as coisas.

Após o lide parece haver um diálogo com a pintura, logo na primeira página, já o final e alguns outros momentos da narrativa propõem um diálogo com o cinema. Como outras linguagens te inspiraram ao longo da escrita do romance?
A ideia inicial do romance nasceu de uma observação sobre pinturas da idade média. Notei que ao nos aproximarmos do período do renascimento, ia ocorrendo uma lenta mudança temática e vi alguns quadros com uma espécie de santificação das pessoas comuns, retratadas com detalhes ao fundo que lembravam auréolas. Daí, surgiu na minha mente uma imagem muito forte: uma mulher do povo, simples, rosto marcado pelo sofrimento, com um olhar que trazia uma história de revoltas reprimidas e de um passado contraditório. Por trás desse rosto, eu vi um sol amarelo, redondo, uma auréola. Assim nasceu minha primeira personagem do romance, Celestina.  Outros fatos surgiram de lembranças e imagens reais ou imaginárias que eu trago comigo. Talvez por isso, essa aproximação que tantos falam com a linguagem cinematográfica, pois o romance surgiu a partir de imagens. Há ainda uma personagem, cujo texto, foi todo calcado em cima de tangos e boleros. Queria criar um clima de mau gosto, de lugar comum, de estranhamento, onde verdades e mentiras misturam-se. Não achava um tom que me agradasse, mas me vinha à memória um verso antigo de um bolerão. A partir daí, construí toda a apresentação da personagem através da colagem de boleros e tangos. Gostei desse efeito que trabalhei exaustivamente no texto para que não destoasse e não chamasse demais a atenção do leitor.

Há pouco tempo, em entrevista para o programa Trilhas de letras, o editor Carlos Andreazza disse que a literatura contemporânea não tem se ocupado em criar grandes personagens. Acredito que o seu Luís/Vicente é uma exceção no atual cenário literário. Como foi o processo de criação deste personagem? Antecede a obra ou ele foi construído ao longo da feitura?
Tive a preocupação de, além de tudo contar uma boa história, com personagens vivos. Foi um processo rigorosamente construído, a partir da história de uma vingança, mas cada detalhe e cada personagem construído com rigor. Fiz para meu uso, fichas com toda a vida deles, mesmo com o que não narrativa. Nas primeiras linhas do capítulo Primeiro Dia, eu brinco com o leitor sobre isso. Tudo vai surgindo na neblina, um rosto que vai se revelando, um local que vai aparecendo aos poucos, mostrando como é o próprio processo de criação. E deixo escrito claramente que há coisas que não vou revelar. Todo o romance é também uma reflexão sobre o ato de escrever, sobre ficção e realidade e sobre o processo de criação. Pelo menos, tentei fazer isso.

João, O rio de todas as nossas dores toca em questões presentes no atual momento político de nosso país (Atuação de sindicatos, a busca para esclarecer alguns crimes ocorridos na ditadura, enriquecimento de pessoas que colaboraram com o regime). O presente interferiu na concepção do romance?
Aí vale a lição de meu mestre, o escritor que leio e releio constantemente, Osman Lins: “. Busco as respostas dentro da noite e é como se estivesse nos intestinos de um cão. A sufocação e a sujeira, por mais que procure defender-me, fazem parte de mim – de nós. Pode o espírito a tudo sobrepor-se? Posso manter-me limpo, não infeccionado, dentro das tripas do cão? Ouço: ‘A indiferença reflete um acordo, tácito e dúbio, com os excrementos’. Não, não serei indiferente”. Eu tentei ampliar com a narrativa o entendimento das coisas, levantar o pano que encobre o real, mas tendo o compromisso também de refletir sobre o meu tempo, sobre as pessoas e os acontecimentos presentes e tomar posição sobre isso. Tenho lado na vida, convicções que estão claras também no romance.

Um fato ocorrido na infância do protagonista, o acompanha ao longo dos 28 anos de hiato temporal aberto na obra. O homem passa a vida ruminando o que sentiu ainda criança?
Um fato que leva o protagonista a uma viagem para entender o que aconteceu com ele e fazer justiça. Ele se propõe a ser a consciência, o que procura levar o acerto, limpar as impurezas, embora tenha claro que sua ação poderá criar novos erros. Ele deixa pistas sobre o significado das coisas. Não vou avançar nesse campo, mas Vicente deixa sinais pelo caminho nos símbolos e letras. Eles não foram colocados ali à toa, procuram dar um significado mais amplo à obra. Aliás, tentei não deixar nada entregue às mãos do acaso. Foram dois anos de escrita praticamente diária. Em cada nome, data, número e imagens eu procurei dar um sentido, reforçar uma visão de mundo e tornar possível algumas leituras, além da história propriamente da vingança.

No prefácio, Daniel G. Lopes chama a atenção para a importância do espaço (Vila da alegria) na obra, se assemelhando ao Cortiço, de Aluísio de Azevedo, influenciando na interioridade das personagens da vila. No início é dito que a Vila fica localizada em São Miguel Paulista. Quais foram as fontes para criar o cenário-personagem da sua obra?
A Vila da Alegria eu situei em São Miguel Paulista, mas poderia ser um local em qualquer outra grande cidade com bolsão de pobreza. Ajuntei na construção dessa vila um pouco de muitos lugares reais e imaginários, Eu, como o próprio personagem, também tinha um mapa detalhado de todas as ruas e vielas dessa Vila da Alegria. Daniel Lopes chama atenção para isso, a Vila é praticamente uma personagem a mais na narrativa. Ela e o rio que Vicente irá encontrar no final têm caráter simbólico.

A presença de Alice, uma moça nascida num ambiente burguês, que por conta das reviravoltas do destino, acaba na vila, onde organiza uma associação de moradores, é constatação que o proletariado não consegue se organizar por sozinho?
Na verdade, no final da década de 1970, a zona leste recebeu muita gente, de outras regiões, com formação universitária. Gente que veio para se engajar nos nascentes movimentos sociais. Isso foi um fato comum, que eu usei como referência para Alice, numa circunstância diferenciada.  O conflito de Alice é, eu diria, existencial. No local, onde ela passa a morar, já havia a organização sindical. Ela ajudou, sim, na organização dos moradores, mas não tenta substitui-los em momento algum. Entretanto, sobre isso, valeria uma longa discussão política sobre o espontaneismo ou não dos movimentos, debate que não cabe aqui. Alice é, e se coloca, como um elemento de fora, alguém que está em busca de seu lugar na existência, que não é dali, que é de classe social diferente, mas que acaba se identificando e encontrando uma razão de viver no meio daquela gente. Ela descobre uma face dura  do mundo que tantos tentam ignorar.  Com certa ironia, Alice se refere em dado momento à vila como o seu país das maravilhas. Ela é uma parceira na luta. Nada mais. Destaco ainda que tanto Alice quanto Vicente, na verdade, são párias, elementos deslocados e à margem dos dois mundos, mas que acreditam encontrar certo pertencimento com aquela gente. A raiz de Vicente está ali, embora tenha ficado distante muito tempo do local.

O lançamento do romance de maneira independente foi uma opção ou falta de encontrar no cenário editorial uma proposta que lhe agradasse minimamente?
Fugi muito da publicação, durante minha já longa vida. Quando decidi trazer este romance à luz, tive algumas conversas, senti um sinal verde alguns editores. Como trabalho como jornalista há alguns anos, tenho noção de diagramação, de edição, etc. Conversando com Daniel Lopes, ele me sugeriu: já que você tem os meios, publique independente. Era o conselho que eu aguardava. Amigos e pessoas da minha família ajudaram. Alguns, através da leitura dos originais, com sugestões e apontando eventuais incoerências, outros  com a diagramação, consultas de gráficas, etc. O artista plástico Rodrigo Martins  presenteou-me com uma belíssima ilustração que foi a capa do livro. Resolvi a parte burocrática e estamos aí, com O rio de todas as nossas dores.

https://www.facebook.com/joaocaetano.donascimento.1






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