quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

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FERNANDO - JANDIRA ZANCHI

Ilustração; Martin Stranka

Passionário, sempre, passionário. Aquele café, aquela esquina, o final de tarde, as luzes, natural e artificial, se confundindo. Uma brisa quente subindo pela calçada. Um leve ardor no sexo, logo esquecido. O ar, o desejo, os rapazes. Sempre foram os rapazes. Procurava as moças, algumas, belas, até doíam de tanta beleza, desfeitas em seu desejo de homem, de posse. Algumas mais livres, alegres, entusiasmadas com seu trabalho, em alguma criação, com vida. A essas desejava mais, perseguia quase, mas, não, eram um pouco  nefastas, era mais o interior delas, a pele macia, os olhos semicerrados depois do amor. Era uma espécie de encanto, breve, solícito. Sempre ficavam amigas. Sempre via aquele apertar de olhos da decepção. Não no primeiro dia, ou nos primeiros, em que era um pouco intenso, depois, nada o movia. Conseguia perceber rápido demais o conjunto e ficção de seus mundos, ainda que se movesse daquela beleza, da liberdade, daquelas de olhos altos tão bem colocadas em sua Villa, arte, movimento, paisagem.

Era um escultor, um ator e um deus da beleza plástica, um amante sempre intrigado do movimento, da luz,  da secura da plenitude, do divino de alguns momentos humanos, antes que começassem a se decompor na entropia dos ventos. E a beleza estava neles,  invencível em Apolo, em suas linhas cruéis traçadas com movimentos precisos, sólidos, rochosos ou altos, louros, ou não, morenos de olhos profundos, os gestos magníficos de melhores animais da espécie. Os invejava? Também era belo, não assim de músculos e fardos, mas de elegância, amplidão, conhecimento, desenvoltura no belo.

Durante muito tempo ficou questionado dessa função de macho aos pés de outro. Em alguns compreendeu, perfeição, arame cortado em fios abstratos na mente, soluções, arquétipos bem incorporados na ação, homens que desenvolviam papéis perfeitos em frentes nem sempre adulteradas por arte ou sugestão. Atores de indústria, corporações, organismos governamentais, arquitetos, médicos, cirurgiões, pesquisadores, sim, eram esses que derretiam seus dias em noites ásperas, astutas, criadoras, vulcânicas. Os preferia aos atores, escritores, escultores como ele.. era a esses príncipes de baixo relevo a sua dedicação. Pois, enfim, se deu conta de que tinha linhas traçadas para além corpo, com sugestões de literatura e filosofia na forma, na plenitude do ser. Perfeição conjugava imagem e ação.

Com alguns viveu na Villa cravada em pedras e sitiada pelo mar. Para esses indicou suas flores, os frutos de suas árvores, a ternura do seu povo, aquele que fazia a feira, um artesanato, pequenos trabalhos nos consertos e arranjos domésticos. Para eles reverenciou as vovós e seus pães corados, suas mantas, os doces esmerados do lugar. Foi honesto e se confessou benemérito da escola paroquial, até permitiu que o acompanhassem na missa de domingo, nas conversas com as senhoras das barracas, suas noites de feira da quermesse... enfim, contou de seus detalhes, de seu amor ao vento, a terra... mas, não os levou aos cafés. Não naquele, viril e rosado na esquina do burburinho, quase assaltado no começo do calçadão pelo movimento, febril nessas horas de carros e pessoas... não, neste, era o artista mundano, beijava mão de algumas mulheres, convidava as senhoras das repartições de cultura  e os músicos... os rapazes, chegavam mais tarde, magros, os cabelos longos, aqueles olhos soltos, entregues para estrofes e vinho, muito vinho. Bebia com eles. Não ali, formavam grupos e saiam pelas ruelas, paralelepípedo, centro histórico, fotografando algumas vezes, uma flor, um detalhe, uma luz, a lua amarela ou sisuda, que a noite era sempre de lua,  mariposas, dessas que se golpeiam por sobre as luminárias dos postes. Riam muito, alguém sempre cantava, outro fornecia um ritmo diferente, existiam os que declamavam. Ele fazia alguns esboços, sempre disputados, assinados. Cigarros, volúpia, noite. Meninas aconteciam, a exaltação aumentava. Por ali mesmo, seja aonde fosse o lugar, se beijavam, sussurros, gritos abafados, alguma audácia. Ele, vez em quando, também se grudava em alguma, era quando as noites eram mais soltas, quase companheiras do dia.

Mas, sim, nem sempre. As vezes a noite corria e ficavam alguns. Esses que já se conheciam... e podiam ficar juntos ou, outros, novos, arcanjos ou afobados, nem sempre atletas, encrespados ou tímidos, ficavam. Os que se permitiam nunca usavam o primeiro gesto. Se necessário, quebravam alguma onda, meio longa, de silêncio ou espera, com bravuras ou confidências, camaradagens. E.. mais alguns segundos sempre, mais alguns quarteirões, iam subindo ladeiras e voltas, então, enfim, se conseguia perceber. Eram olhares estreitos, as vezes trêmulos, olvidados, que poderiam, talvez, não ter existido, ou sim. Pequenas rimas, um toque de mão, e os amigos que inauguravam, talvez dessa ronda já informados, se explicavam.


Eram as melhores noites, lembrava, na Villa, do encantamento. Aquela surda e repetida caça, promíscua, vagarosa, lenta e elaborada, desconfiada, as vezes maliciosa, apreensão... maravilhosa a recompensa. Um amor ou outro, talvez nada que se comparasse aos atletas ou aos capitães, mas, verdade inteira, farejada, desejada, envolta na mais séria verdade de cada um. Pois amavam homens e, sim, nada neles poderia indicar esse sim. Só o outro, o desejado da noite e alguns vinténs dos  seus comparsas. Esses calariam ou aprenderiam ou assediariam. Mas, só depois.

JANDIRA ZANCHI  (de Egos e Reversos, inédito).

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